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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

LAMA E CINZAS




Imagine a cena: uma garota, ajoelhada, observa atentamente um livro pegar fogo na sua frente. O cenário é uma floresta sombria e gélida, mas não silenciosa. Gritos ecoam entre as árvores, altos o suficiente para serem ouvidos a quilômetros de distância. Dezenas de homens e mulheres furiosos cercam a garota, empunhando tochas, facões, pás, toras de madeira e outros objetos capazes de ferir e matar. Um homem destaca-se da multidão. Ele aponta uma flecha para a menina indefesa no centro da clareira. Seus olhos estão cravados nela, mas ela parece não nota-lo; na verdade, ela parece não haver percebido ainda a horda furiosa que a cerca. Toda a sua atenção está posta no livro em chamas. Nada a perturba.

Este é o final da história; agora olhemos para trás, para o começo.

                Mais um dia cinza. A estação das chuvas havia chegado, e junto com ela, frio e tristeza. O Beco dos Enforcados era um verdadeiro lamaçal, repleto de pessoas apressadas esbarrando umas nas outras e apinhando as barracas do mercado, para êxtase dos vendedores. Cachorros esqueléticos dormiam sob as lonas; resto de comida apodreciam e misturavam-se à lama negra; ratos do tamanho de gatos esgueiravam-se pelos cantos. Apesar do cenário aparentemente caótico, tudo estava como deveria estar, não fosse pelo homem de vestes esfarrapadas que perseguia furtivamente uma garota através da multidão. Ela já o havia percebido, e tentava fugir e despista-lo de todas as maneiras possíveis, mas era inútil; ele não tirava os olhos dela. O espaço entre os dois ficava cada vez menor, não importava quanto esforço ela fizesse para escapar. A garota, por fim, deu-se por vencida, e abandonou todas as esperanças de conseguir fugir, mas, ao olhar para trás, percebeu que o homem não mais a seguia. Ela só teve tempo de parar e recuperar o fôlego, antes que uma mão grande e calejada agarrasse seu pulso e puxasse-a para uma viela deserta.
                — Por que você tentou fugir? — sussurrou o homem, com a voz carregada de uma fúria falsamente contida. Seus olhos estavam vermelhos, fazendo-o parecer com os demônios dos quais o pastor falava.
                — Eu não tentei fugir, Sr. Henrik. Eu só estava apressada.
                — O que você está escondendo?
                — Me solte Sr. Henrik. O senhor está me machucando.
                — Diga! — ele aproximou seu rosto do da garota, como uma fera farejando sua presa.
                — Eu não sei do que o senhor está falando!
                — Claro que sabe. Eu estou falando da minha filha, a Samantha. Você lembra dela? Claro que lembra; você estava lá quando tudo aconteceu; você e suas amiguinhas, que, por alguma razão que eu desconheço, também estão tentando fugir de mim. Agora, diga, o que vocês sabem que eu não sei?
                — Eu não sei de nada, senhor! Eu juro!
                — Você estava lá. Você viu!
                — Ela se jogou, senhor. Foi isso que aconteceu. Agora me deixe ir, por favor — a esta altura, a garota já se desmanchava em lágrimas. O terror impedia-a de respirar normalmente.
                — Nós dois sabemos que minha filha não se matou. Agora fale a verdade.
                — Eu já disse, senhor...
                — A VERDADE! — o pouco autocontrole que ele tinha abandonou-o completamente.
                — Foi um acidente! — ela não suportava mais, e desabou de joelhos aos prantos. — Foi um acidente.
                — Acidente? O que você quer dizer?
                — Eu não posso falar mais que isso, entenda...
                — Já perdi tudo o que tinha na vida. Eu não me importaria de ir para a forca porque matei a assassina da minha filha. Agora fale a verdade, ou eu juro que quebro seu pescoço aqui e agora.
                — Foi um acidente, Sr. Henrik. Nós não queríamos que aquilo acontecesse. Ela estava... dançando, e chegou perto demais da ponta. Nós iriamos tirá-la de lá, mas a Eva disse que estava tudo bem... então ela... caiu. Não pudemos fazer nada, senhor. Eu juro.
                — De que Eva você está falando? A filha dos Rudiger?
                — Sim, ela mesma. Mas não conte por aí o que eu falei ao senhor. Ela... — a garota calou-se e ficou pálida como a cera de uma vela. Aparentemente havia se lembrado de algo terrível, mas logo após esta reação inesperada, ela olhou George Henrik nos olhos, e voltou a falar com uma voz impressionantemente firme — Posso ir agora, senhor? Meus pais me esperam.
                — O que você ia falar sobre a Eva?
                — Eu de fato preciso ir.
                — Se ela tem alguma culpa na morte da minha filha, conte-me, por favor.
                A garota passou longos segundos encarando-o, como se tentasse enxergar sua alma através de pele e ossos. Ela parecia estar lendo um mapa. Só depois de seu minucioso exame, decidiu falar.
                — Não procure a Eva, Sr. Henrik. Ela não é a mesma de antes. Ela mudou depois que achou aquele livro.
                — De que livro você está falando?
                — O livro que ela encontrou na floresta. Ela não o larga mais. Fala sobre ele o tempo todo, e nos faz repetir as palavras que tem nele. O liamos na noite em que Samantha caiu.
                George engoliu em seco. O frio que ele sentia subir pela espinha era um sinal de que algo estava errado. Muito errado.
                — E o que tem nesse livro? — ele perguntou, temendo a resposta.
                — Coisas antigas. Coisas que não estão na Bíblia, e que ninguém deveria saber.

●●●

                — Isso é loucura George! São apenas crianças! — gritou o pastor, perdendo a pouca paciência que lhe restava.
                — Eu ouvi da boca dela! Ela disse que existiam “coisas antigas” no livro, que não estão na Bíblia. É bruxaria!
                — É tolice! — o pastor aproximou-se de George, e colocou a mão em seu ombro — Entendo que você esteja confuso...
                — Confuso? O senhor acha que eu estou confuso?! Minha filha despencou de um penhasco! Minha mulher foi embora gritando que eu era o culpado! MINHA VIDA ACABOU! E agora o senhor diz que estou confuso? Não, eu não estou confuso. Eu estou irado, e quero pegar o responsável pela morte de Samantha, não importa se é uma garotinha ou o próprio Diabo!
                — Controle-se homem. Você está na casa de Deus. Sei o quão doloroso é o que você está sentindo, mas não podes sair por aí acusando garotinhas de praticar bruxaria. São crianças. Tudo não passa de um mal entendido, tenho certeza disso. Escute-me. Vou até a casa dos Rudiger e pedir para que Eva me mostre este livro, e, se eu encontrar algo de estranho nele, você será o primeiro a saber. Estamos de acordo? — George anuiu de cabeça baixa. — Ótimo. Agora vá para casa. Vai ficar tudo bem.

                Mas não ficou tudo bem. Antes de o Sol se por, uma camponesa, que trabalhava próximo à casa dos Rudiger, encontrou os corpos do pastor, da mãe e do pai de Eva jogados no limite da floresta. Onde deveriam estar os olhos, havia apenas buracos escuros, e suas entranhas serviam de jantar para incontáveis e estridentes corvos.
                O caos se instalou. Portas foram arrombadas. Garotinhas foram arrancadas dos braços de suas desesperadas mães. George interrogou uma por uma, inclusive a garota que havia encontrado mais cedo no mercado. Ela não parecia a mesma menina assustada de antes. Não importa o quão ameaçada ela fosse, não falava nada. No entanto, quando George já havia desistido de extrair alguma informação dela, ela falou:
                — Desista. Vocês não vão conseguir pega-la. Ela não é como o resto de nós. Ela sabe coisas que não sabemos; que ninguém sabe. Você viu o que ela fez com os próprios pais, agora imagine o que ela vai fazer quando colocar as mãos em você. Desista desta loucura enquanto pode.
                — Onde ela está?
                — Agora vejo de onde Samantha tirou toda aquela teimosia. Ela não queria mais participar dos rituais, mas é claro que nunca a deixaríamos sair. Você precisava ter escutado ela gritando quando a Eva a empurrou do penhasco. Foi hilário! Parecia uma porca! — a garota caiu na gargalhada, gargalhada esta que não parou quando George deu-lhe um bofetão forte o suficiente para derrubar um homem.
                — Queime-a — disse George para um jovem de olhar assustado que acompanhava o interrogatório.
                — Como, senhor?
                — Queime-a. Ela e todas as outras. Faça uma grande fogueira na praça e queime-as. E procure voluntários para entrar comigo na floresta. Vamos caçar aquela putinha satânica.

                George e seus companheiros partiram deixando para trás uma gigantesca pira cheia de garotas em chamas. Ainda podiam-se ouvir os gritos, mesmo de muito longe. Não havia lua ou estrelas no céu, mas havia tochas na terra. Muitas tochas; empunhadas por uma multidão furiosa. Um exército de bolas de fogo.
                Não foi difícil achar Eva. Aparentemente, ela não estava tentando se esconder. Encontraram-na ajoelhada no meio de uma clareira, observando um livro — o livro — pegar fogo. Ela não esboçou nenhuma reação quando a multidão a cercou, nem quando George deu um passo à frente e apontou uma flecha para ela. Ele esperou que Eva falasse ou fizesse algo, mas nada aconteceu.
                — Por que você está queimando o livro? — George não suportava o silêncio dela; era perturbador.
                Eva ergueu a cabeça, e só então pareceu nota-lo, mas não demostrou mais interesse do que antes.
                — Não preciso mais dele — era gelo a sua voz, fria e penetrante.
                Ela levantou-se lentamente, e começou a despir-se. A cena deixou todos os presentes horrorizados, principalmente quando puderam enxergar o que havia sob seu vestido. Inicialmente pensaram ser cortes, finos e tortos, cobrindo cada sentimento de sua pele, mas só depois de olharem-na mais detidamente é que perceberam que eram palavras. Um monte delas. Ainda brotava sangue de algumas. A vadia havia rasgado os textos do livro em sua própria pele.
                George não esperou que ela fizesse mais nada; puxou a corda do arco e preparou-se para atirar. Eva limitou-se a olha-lo com desdém, e falou:
                — Vocês são tão fracos.
                As palavras que ela disse depois disso eram incompreensíveis para os presentes, mas todos perceberam o quão fortes elas eram. Havia poder nelas. O poder sobre a vida e a morte.

5 comentários:

Claudio Chamun disse...

Muito bom Pedrão. Forte, mas muito bom. (que medo - rsss).

Anônimo disse...

Suas estórias são demais Pedro. Curto muito!
Essa aí eu fiquei olhando para os lados,rs...

Continue escrevendo sempre!!! :D

Pedro Lourenço disse...

Obrigado, gente.
[Sinceramente não sei que medo essa história dá]

Kelly Leopoldina disse...

Ficou muito bom mesmo Pedrinho! Fiquei boquiaberta!

Jefferson Reis disse...

Gostei muito. Fiquei com certa pena das meninas queimando na fogueira, mas sei lá. Você é muito criativo e gosto dos seus temas.