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sábado, 21 de dezembro de 2013

TESOUROS E TERRORES

Entre os povos antigos de diversas partes do mundo existem lendas que falam de tesouros. Alguns estão enterrados, outros amaldiçoados. Há aqueles que se perderam na história, esquecidos dentro de cavernas escuras, trancados em templos ancestrais, abandonados nas profundezas dos mares. Mas existe um tipo de tesouro especifico que, há séculos, vem despertando o temor e encanto da humanidade: os tesouros guardados por dragões. Estas histórias gelam corações covardes, acendem uma chama nos destemidos e inspiram os artistas e sonhadores. Como esquecer o poderoso Smaug? Ou o Eustáquio, que, em sua inconsequente ambição, acabou por tornar-se uma das feras que tanto temia?
            Uma destas lendas me chegou aos ouvidos. A verdade é que não escutei uma palavra que fosse sobre tesouros, apenas sobre o dragão. Enorme, sorrateiro, com dezenas de cabeças. Tentei tapar os ouvidos, fugir da mística e terrível história, mas não havia para onde correr. O destino me empurrou para cima dele, sem armadura, escudo ou espada.
            Olá rapaz, o que o traz aqui? ― a fera não falava, trovejava. Fui atraído por ela como somos atraídos pelas devastadoras tempestades.
            ― Eu não queria estar aqui. Eu não quero. Este não é o meu lugar.
            ― Não, de fato não é. Mas agora você ficará. A morte lhe chamou, mas você não a atendeu. Poderias ter desistido desta sádica aventura logo em seu início, mas preferiste seguir em frente.  Agora você permanecerá aqui para todo o sempre, comigo. Conosco.
Nem tive a chance de lutar. Meu coração já não existia mais, nem a mente ou a alma. Fui mutilado e dilacerado lenta e dolorosamente. Numa única dentada, a besta engoliu meu corpo, me fazendo mergulhar por sua goela abaixo, solitário. Minha cova era escura e úmida, e o único som que se podia ouvir era o bater dos corações da fera, como que para me lembrar de que eu ainda estava vivo.  Eu ainda estou vivo.
Você ainda está vivo. Eco. Você ainda está vivo.
Algumas outras lendas falam da figura da deusa protetora, da virgem mãe. Ela socorre os heróis nos momentos de desespero, quando tudo parece estar perdido e a esperança já está morta. Quando o fim é certo e a lâmina já se faz sentir no pescoço. Foi uma dessas deusas que eu ouvi, depois outra, e mais algumas – e alguns – , e o coro foi crescendo aos poucos, e o sussurro virou clamor; a calmaria, tempestade; o medo, fúria. E o ventre da fera rasgou-se. Fui puxado para fora dele por mãos caridosas. Nasci ali. Eu podia andar e falar e lutar. Ele tinha o mesmo rosto que eu, e a mesma voz. Mas agora ele estava morto, apodrecendo no interior da besta. Ele suportava as punições, terrores e ameaças. Mas não eu. Eu era outro agora.
Fui armado com algo que não sei descrever. Ora brilhava como ódio, ora como justiça. Minha mão levantou-se no ar, e outras se uniram a ela. Algumas conhecidas, outras estranhas. Uma a uma, as cabeças foram sendo decaptadas. Com surpresa, descobri que aquelas cabeças eram, assim como eu, aventureiros que acabaram por ser atraídos para dentro do covil do monstro. Para dentro de seu estômago. Lá, foram envenenados pouco a pouco, e, sem que se dessem conta, acabavam por fazer parte do monstro também. Mas agora estavam tragicamente livres. O sangue incandescente que lhes jorrava iluminava as pilhas de tesouros até pouco invisíveis.
O ar explodia em chamas. A misteriosa lâmina que me foi entregue dançava sobre a besta, ferindo-a cada vez mais fundo. Ela urrava. Ela desesperava-se. Ela temia.
Meu império.
As cabeças despencavam numa chuva de ouro e verdade.
Meu tesouro.
Ela havia tentado escondê-lo de mim. Esconder as joias raras que nele estavam. Esconder as belezas confinadas ali. Mas eu as achei, a duro custo, mas achei.
Eu.
A besta já não era mais nada. Seu veneno, outrora mortal, tornou-se cada vez menos letal, e seu discurso, cada vez menos atraente e assustador. Mortalmente ferida e desacreditada, ela fugiu para terras distantes, para perto de um novo grupo de aventureiros, que sonham e desejam. Mas aqueles que têm notícias dela contam-me que estes novos viajantes já começam a desconfiar de suas artimanhas, e armam-se para enfrentá-la.
O mal ainda reina. Mesmo fraca e assustada, a criatura escamosa continua a ferir. Seus seguidores, uma horda de sanguinários bárbaros, capturaram um nobre e antigo rei, e coroaram-no com uma coroa de espinhos negros. Um dia esta coroa vai ser posta sobre a cabeça da besta, então o império do terror chegará ao fim. Mas, até que este fatídico dia chegue, nossa luta será diária.
Precisei da ilusão. Precisei do medo. Precisei do fim.
Precisei das deusas e deuses que me fizeram renascer. Precisei da coragem das cabeças amaldiçoadas, que mesmo condenadas, me mostraram a verdade. Precisei descobrir que havia um tesouro na escuridão, encoberto pelo terror.
Precisei lutar. Ainda preciso lutar. Mas não pelo poder ou glória, como a besta e os seus, e sim pela liberdade e verdade. Por aqueles que amo, e que me amam. 




sábado, 3 de agosto de 2013

AQUÁRIO

É conveniente fechar os olhos
Negar as verdades pichadas nas paredes
É conveniente apagar a fome, ignorar a sede
Resta assistir a novela, rezar na capela
Queimar a favela

E é peixe toda essa gente
Grandes comem os pequenos
Pequenos comem a si mesmos
E não adianta se esconder em outros mares
Destino, rede e panela
E todos estrebucham juntos
No fim das contas, são todos peixes

E festeja a nação que já nasceu arruinada
Enquanto o homem venera os cães do senado
Corre seu sangue pro chão, vermelho fica o asfalto
E dorme pra sempre o homem, e sonha que é feliz
No fim das contas, são todos peixes
No fim das contas, são todos homens
No fim das contas, no fim.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

BREVE HISTÓRIA DAS PALAVRAS PERDIDAS

Tranco no escuro o verbo viril
Rasga-se a página, escorre-me a alma
Da tinta surge a vida, da história ecoa a calma
No papel deita-se a palavra hostil
Inquieta, repousa em sono febril

No caos procura-se a relíquia
A joia rara, a lendária criatura
Acaba-se afogado num mar de loucura
Restam palavras não ditas
Impõem-se antigas torturas

Mas é menor o canto
Daquele que canta só?
Dos olhos cegos enxuga-se o pranto
 Na boca, doçura, nas asas, a cura
Cura para os dias cinzas
Para a universal amargura

Sobre a terra derrama magia
Segue os passos de anônimos heróis
De outras histórias sua história se constrói
Segue, o bardo, entoado silenciosa melodia

terça-feira, 30 de julho de 2013

PONTEIROS GRANDES E PEQUENOS

Quando a hora chegar
Não existirão mãos para me segurar
O mundo descobrirá que esta venda não me cegou
Não me impediu de saber que o céu fica acima
E o inferno abaixo

Nem todas as bocas e vozes conseguirão
 Abafar meu rugido, quando a hora chegar
E toda a gente se calará
Suspensa no escândalo do espetáculo

Quando a hora chegar, meu canto ganhará melodia
Quebrarei esta casca dura e fria
E verei a luz do sol, e serei o sol
A verdade habita este casulo, e o sonho, o medo...
No primeiro estalo recuarão
No segundo, me virarão as costas
Não existem muralhas do lado de fora
Apenas olhos, e olhares

Quando a hora chegar, não existirá mais medo
De mim sangrará o sangue dos anjos

Pegarei para mim meu futuro
Aquele que podaram e remendaram
Darei um passo, depois outro, depois voarei
Perderei abraços e laços, e as estrelas que nomeei se apagarão
Mas ganharei a vida, e o livro no qual se escreve minha história

Quando a hora chegar, abrirei as asas.

...

domingo, 28 de julho de 2013

BARRICADA

Dia e noite tentando fugir da escuridão
As mãos cheias de calos, os olhos cegos
Eles correm de um passado que sequer viveram
Tão jovens ainda, e já condenados.

É tarde, e todo o mundo dorme
Mas das profundezas ergue-se a tempestade
Trovejando brados de liberdade
O amanhecer não tarda a chegar
E a luz banhará os homens, agora e sempre.

Eles são amantes da morte
Em seus hinos cantam batalhas que jamais lutarão
Quem chorará por eles?
Quem lhes negará o inferno do mundo?
Tão jovens ainda, e já cheios de paixão.

Abrem os braços e rogam aos céus
Seus corpos entregam-se a guerra
O canto eleva-se, as vozes unem-se
Seus sonhos enchem de vida
Esta terra de miseráveis
Tão jovens ainda, e já cheios de esperança.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A FERA, APENAS ELA

O rapaz achava interessante a ausência de futuro em sua vida. Nada permanecia, crescia e mudava. Tudo era efêmero, passageiro, finito e quantos sinônimos mais você achar para dizer que nada perpetuava, tudo parava no meio do caminho. Sim, o rapaz sou eu, mas gosto de imagina-lo (imaginar-me) como apenas mais um dos personagens das minhas histórias, com finais irrelevantes e previsíveis. Parando pra pensar agora, percebo que a ausência de finais felizes na vida dele influenciou o tom cinza e pessimista de seus contos. Você deve conhecer os contos dele, aqueles que ele posta num blog vago e pouco visitado.
Ele nunca desejou os espinhos que carrega sobre a pele, mas eles cresceram mesmo assim, afiados e negros. Deve ser culpa da genética. Os mortais afastam-se dele, e atrevo-me a dizer que até as matérias frias e sem vida lhe tem aversão; só isso explicaria o ar que frequentemente escapa-lhe dos pulmões sem motivo aparente. É o vento correndo, atrás da árvore se escondendo. Ele é a Medusa, transformando em pedra aqueles que ousam olhar em seus olhos e encarar sua alma. Resta atrás dele um jardim de estátuas; rostos conhecidos e até queridos, que sua maldição titânica – sei que não foram os titãs – renegou à solidez do esquecimento.

Ele é a fera cuja história jamais foi contada. Sem princesas, fadas ou bruxas. Apenas a fera, vidas petrificadas e espinhos negros. O texto acaba, mas o vazio permanece. Com licença, vou ali aproveitar minha desesperança junto à minhas estátuas.

domingo, 30 de junho de 2013

3013

Percebendo que já faz um tempinho (um tempão, na verdade) que não posto nada aqui no blog, e que meus poucos e fiéis leitores estão me cobrando, decidi reblogar um texto meu que foi originalmente publicado no Descobrindo Escritores. Este conto surgiu de um dos inúmeros desafios que o D.E. realiza, incentivando escritores a produzirem textos em períodos curtíssimos de tempo, e o desafio do qual o conto que você está prestes a ler surgiu era justamente sobre "Sexo".  Então, hum... divirta-se e... bem,  faça o que quiser, e, caso você entenda alguma coisa dessa história, me fala, porque eu escrevi mas não entendi porr* nenhuma.





Num futuro não tão próximo, mas também não muito distante, não existirá mais sexo. A ciência, sempre eficiente e milagrosa, conseguirá tirar este empecilho de nossas vidas, esta atividade tão selvagem e irracional. Os bebês serão todos criados em laboratórios… eu falei bebês? Desculpe meu equivoco. Os adultos serão todos criados em laboratórios, e já sairão de lá com 24 anos de idade, prontos para o mercado de trabalho, ganhando não apenas uma certidão de nascimento, como também um diploma universitário e um frasco de antidepressivos. Os cientistas acharam melhor cortar a infância e a adolescência, pois são fases da vida muito complicadas e problemáticas, que, no fim das contas, só servem para aborrecer os pais. Não preciso dizer que essa escolha acarretou a falência do mercado de fraldas e pornografia, é claro. E já que falamos nos pais, é interessante frisar que eles nunca tiveram um papel tão importante na formação dos filhos como agora. Não estou falando apenas da formação moral não; refiro-me também à formação orgânica. Sim, “formação orgânica”, pois agora os pais podem escolher tudo na composição dos filhos, desde cor do cabelo, formato dos olhos, profissão e até gosto musical e tamanho da bunda, que não são muito grandes, por sinal. E já que falamos em música e bunda, quero informar que o funk e as mulheres frutas já não existem mais. Eles foram exterminados em 2078, numa revolução que ocorreu logo após a Mulher Abacate III tornar-se presidente do Brasil e transformar uma música do MC Hímen ― filho do Mr. Catra com a Valesca Popozuda ― no hino do Brasil. Os revoltosos tiraram os funkeiros do poder, e agora o hino do Brasil é um sertanejo universitário.

O que importa é que agora o mundo é um lugar lindo para se viver, com 14 bilhões de pessoas loiras, com dois metros de altura e olhos azuis. Claro que sempre tem aqueles pais rebeldes que colocam olhos verdes nos filhos ― uma breguice sem tamanho ―, mas esses são poucos. Contudo é importante deixar claro que, mesmo numa sociedade tão evoluída como esta, ainda existem resquícios da selvageria humana. A maior prova disto é o fato de que muitos homens e mulheres ainda se interessam pelo prazer sexual. Procurando se aproveitar deste desejo insaciável da humanidade, os cientistas ― sempre eles ― da Assky Corporation desenvolveram um pirulito com o poder de satisfazer o apetite sexual das pessoas. Utiliza-lo é muito simples: você abre a embalagem, coloca o pirulito na boca, chupa e goza (não o pirulito, você). E ele ainda tem a vasta gama de dois sabores, “Uva” e “Não é Uva”. É claro que a Assky faturou rios de dinheiro com essa invenção, e o presidente da empresa foi, inclusive, indicado ao Nobel da paz. A humanidade viveu séculos de harmonia e prazer a baixo custo. Viveu, até que…

Num belo dia ensolarado, um grupo de arqueólogos fazia uma escavação próxima à cidade de Junu Z24-i, antigamente conhecida como Caruaru, em busca da lendária cidade de Brasília. Eles não encontraram Brasília por um pequeno erro de calculo, é claro, mas acharam algo muito mais impressionante: um exemplar em perfeito estado ― com apenas algumas páginas coladas ― de 50 Tons de Cinza. Os arqueólogos ficaram extremamente surpresos e empolgados com a descoberta, mas a imprensa não demonstrou mais interesse pelo fato do que demonstraria por um pombo que cagou na cabeça de um técnico em informática. Cabisbaixos, os estudiosos juntaram suas tralhas e voltaram a procurar pela lendária “Cidade dos Canalhas”, mas pouco depois de partirem de Junu Z24-i, eles foram procurados por executivos da Assky que estavam interessados em sua nova descoberta. A multinacional adquiriu os direitos de reprodução e venda do livro, e, em troca, os arqueólogos ganharam um suprimento de pirulitos para a vida toda. É incerto o que aconteceu com eles depois disso. Algumas pessoas afirmam que nas noites de quarta-feira, veem um dos pesquisadores correndo nu pelos arredores de Junu Z24-i, com cinco ou seis pirulitos enfiados na boca. É claro que isso não passa de uma lenda (ou não).

Inicialmente, o interesse da população pelo livro foi pequeno, talvez por causa da linguagem rebuscada e dos “termos técnicos” desconhecidos presentes na obra, mas na medida em que as pessoas davam uma chance ao livro e ao conhecimento sexual arcaico que ele trazia, seu sucesso foi crescendo e, em pouco tempo, tornou-se uma febre. Todos ficaram surpresos ao descobrir que um pênis se encaixa numa vagina e, inclusive, muitas teorias conspiratórias foram fundamentadas neste fato. Mesas redondas com diversos estudiosos e intelectuais foram montadas para discutir a função do clitóris, e uma estudante de economia da China escreveu um TCC sobre a importância do gemido na geopolítica internacional que ganhou destaque na imprensa de todo o globo. 50 Tons de Cinza estava mudando a história do planeta.

Não muito longe do local onde encontraram o livro, na cidade de Hellcife, vivia um técnico em informática chamado José Austin II. Ele e sua esposa, Veridiana, se curtiam muito, e sempre tiveram uma vida sexual muito intensa, prova disto é que eles já haviam provado todos os dois sabores do pirulito da Assky. Buscando algo para apimentar a relação, José comprou um exemplar de 50 Tons de Cinza para fazer uma surpresa para a esposa. Quando ela chegou do trabalho, José mostrou-lhe o livro e, entre um olhar 43 e outro, leu alguns trechos da obra. Eles decidiram experimentar alguma das posições descritas no livro, escolhendo, por fim, uma que vinha com “PARA INICIANTES” escrito em alegres letras verdes ao lado e com uma carinha feliz. Não havia erro. Só que não.

― Essa perna que falam é minha perna ou sua perna? ― perguntou Veridiana, confusa.

― Sua perna. Não! Por aí não. É pelo outro lado. ― José fazia um esforço enorme para ajudar a por a perna da esposa na posição certa, mais parecia que não estava dando muito certo.

― Ai, José! O dedo é no buraco maior. No MAIOR!

É claro que a tentativa dos dois em praticar sexo arcaico fracassou completamente. Antes do fim da noite, ambos já estavam dentro de ambulâncias que voavam a todo o vapor em direção ao pronto-socorro. José ficou cego de um olho e perdeu três dentes, e Veridiana, coitada, ficou paraplégica. Após o ocorrido, os dois se divorciaram, e no meio de tanta confusão, acabaram esquecendo-se de ir buscar José Austin III no laboratório-maternidade, que “nasceu” duas semanas após o acidente. Ele passou a vagar pelas ruas e virou publicitário.

Este incidente não ocorreu isoladamente. Muitos outros casais enfrentaram problemas semelhantes, e foram registrados até casos que resultaram em morte. Algumas mulheres engravidaram. Acontece que as pessoas de 3013 não sabiam o que era engravidar, e as gestantes começaram a ser tratadas como aberrações. No entendimento geral, pequenos aliens estavam crescendo dentro delas ― o que não difere tanto assim da realidade. A população passou a persegui-las empunhando facões, pás e iPhones (na ausência de tochas). Líderes de diversas nações e instituições internacionais pressionaram a Assky para que ela tirasse os livros de circulação, e após o próprio presidente da empresa quebrar a bacia tentando fazer uma das posições “PARA QUEM JÁ É CRAQUE”, a multinacional concordou em recolher os livros. 50 Tons de Cinza ficou registrado para sempre na história como “o maior desastre do século XXXI”. Alguns entusiastas por teorias conspiratórias afirmam que o governo Norte Americanadense adquiriu, num acordo secreto com a Assky, boa parte dos livros recolhidos, e passou a utiliza-los em seções de tortura. É claro que isso não passa de uma lenda (ou não).

quinta-feira, 2 de maio de 2013

DIÁLOGO SOBRE O DEFUNTO



O padre suava aos borbotões dentro de sua batina negra, e, a cada frase de sua prece que terminava, erguia um lenço para enxugar a testa, lenço este que já estava ensopado com o suor do homem de Deus. O sol havia sido ocultado por mal-humoradas nuvens cinza, mas ele, orgulhoso como é, fazia questão de transformar a terra num inferno, mesmo sem poder ser visto. O astro rei derramava impiedosamente seu calor diabólico sobre grama mal aparada, lápides em ruínas e roupas pretas, e uma roupa azul, no caso da Dona Bela.
            As poucas pessoas presentes no enterro se agrupavam em torno da cova aberta, trazendo expressões que iam da tristeza saudosista à impaciência escancarada, salpicadas aqui e ali por grupos de senhoras ― e alguns senhores ― que cochichavam desconfiadas sobre o defunto, a mãe do defunto e a causa da morte do defunto. Margarida falava à Dona Fátima sobre a má educação que Maria José ― a mãe do defunto ― havia dado ao filho, em um tom um tanto altivo para alguém que tem o filho que tem, na minha singela opinião, mas isto não vem ao caso. Zefinha falava com o marido e a filha algo sobre um terreno em Roda de Fogo, e, não muito longe dali, Dona Terezinha e Dona Emília abanavam-se com as mãos enquanto fuxicavam descontroladamente. Impressionante como elas não perdiam o fôlego.
            ― Então, foi gaia mesmo?
            ― A família não falou nada sobre isso, mas a vizinha de Maria José, aquela Ana, que faz salgados, disse que foi gaia. A mãe não quer falar pra não passar vergonha. Até entendo.
            ― Mulher, eu num esperava isso de Cecília não. Logo ela, que tinha aquela cara de santa. O corno pegou os dois na cama, foi?
            ― Nada, mulher. O pobre do Davi tava trocando o botijão de gás quando Ramiro chegou. Teve nem como se defender. Os tiro foi tudo na cabeça.
            ― Coitado. Tão novo e teve um fim desse. Merecia não. Mas é isso que dá comer a mulher dos outros.
            ― E o pior é que nem comeu.
            ― Como assim, mulher? ― falou Dona Emília, alto demais, chamando a atenção de quem estava por perto.
            ― O corno matou o homem errado.
            ― Mas num era esse aí que tava na casa dele quando ele entrou?
            ― Era, mas ele num tinha nada a ver com a história; tava lá porque Cecília chamou ele pra trocar o gás que tinha acabado. Quem comia a mulher de Ramiro era o tal do Eduardo, sobrinho de Seu Bio. Tu sabe quem é?
            ― Num é aquele da moto laranja?
            ― Pronto, é esse mesmo. Pois a história da guaia chegou no ouvido de Ramiro, e ele voltou arretado pra casa, pronto pra matar o cabra que dormia com a mulher dele, mas quando chegou lá viu Davi, e pensou que fosse ele. Deu três tiros na cabeça e fugiu. Parece que Cecília se escondeu, e por isso se salvou.
            ― Sangue de Cristo tem poder. Quer dizer que o menino morreu por nada? Acredito nisso não.
            ― Isso que dá se enfiar em casa de puta. Leva fama de urso sem nem ter tocado na quenga.
            ― E que fim levou Cecília?
            ― Hum! A rapariga não perdeu tempo. Assim que o corno fugiu, ela correu pra casa do urso. Os dois treparam naquela moto e meteram o pé. Tão dizendo que foram pra Alagoas, mas eu acho que eles tão é escondidos por aqui por perto mesmo.
            ― Quer dizer que Davi morreu de graça, a rapariga fugiu com o urso e o corno continua sendo corno?
            ― Então. Parece até novela.
            ― Esse mundo tá perdido mesmo. ― Dona Emília calou-se por quatro segundos, e, acredite, esse foi o silêncio mais longo da conversa. ― Vixe Maria, esse padre não para de falar hoje não? Ele tá achando que a gente não tem mais o que fazer em casa não, é?
            ― Mulher, fala assim do padre não que é pecado. Controla essa língua.
            As duas senhoras calaram-se a tempo de dizer “Amém”, mais um de tantos que ainda seriam proferidos naquele enterro. Dos ali presentes, só o defunto não se uniu ao coro.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

CRIME PASSIONAL





Meu amor foi sua ruína. Naquele dia ensolarado de março, debaixo da mangueira de abrasantes folhas, ela disse sim. A inocente moça não sabia que, além do meu amor, estava aceitando as desgraças guardadas paro os fins das tragédias; aceitava em sua vida um sinal de sangue de morte.
            Gritos. Sirenes. Acusações. Os trovões que explodiam ao meu redor não passavam de ecos distantes, ressoando nos ouvidos de alguém que não era mais eu. O mundo resumia-se aos últimos suspiros dela, ao estrondoso silêncio que ecoava de sua garganta seca. Voz quase morta de uma quase-morta.
            A mão trêmula posta sobre a barriga, guardando para Deus um futuro que não mais existiria. O pior não era a ferida aberta, ou o terror nos olhos, mas sim a boca, que se abriu uma última vez para proferir algumas poucas palavras que em outra ocasião seriam doces e bem-vindas, mas que agora soavam como a mais imunda e miserável das maldições.
           
― Eu estou grávida... de um filho seu.

Os olhos fecharam-se. A verdade trancou-se em seu corpo gelado. Prefiro a dúvida: diminui o impacto das acuações e mantém meus pensamentos distantes da culpa. Como saberei se o filho era meu, ou do irmão dela, que encontrei atracado entre suas coxas? Como saberei se era uma criança que viria ao mundo, ou uma aberração, condenada desde o seu nascimento para queimar no inferno? Como saberei? Prefiro não saber.
Não foi pela repugnante traição, e sim pela vergonha, não a minha, a dela. Os dedos apontados, os gritos de “adúltera” e “incestuosa”. Livrei-a de ser marcada a fogo pela sociedade. Livrei-a da desgraça de morrer em vida. Ela e o irmão dela. Fiz a melhor escolha, eu sei. Incontáveis línguas ainda derramam veneno sobre o corpo dela, e sobre as grades da minha cela, mas este foi o menor dos infortúnios; pelo menos não vejo os olhares, e ela nunca mais verá olhar algum. Melhor uma vida interrompida do que uma vida amaldiçoada. Matei-a por ama-la demais. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

“ENTRE CONFETES, SERPENTINAS, VENHO TE OFERECER COM ALEGRIA O MEU AMOR”



Ela era de Pernambuco. Ele de Minas. Ela se chamava Beatriz. Ele era Roberto Marques Coutinho. Beatriz nasceu e se criou no Recife, sentindo diariamente o sol desta terra queimar seu rosto, deixando sua pele já morena com um brilho acobreado. Roberto nasceu em Tiradentes, mas mudou-se ainda pequeno para BH quando seu pai comprou uma fábrica de rolhas na capital mineira. Roberto não conversava muito com ele. Beatriz trabalhava numa loja de roupas no centro da cidade, e diariamente precisava pegar metrô e ônibus para chegar ao trabalho. Sempre cheios, repletos de pessoas suadas e mal-humoradas. Roberto não precisava pegar ônibus e metrô; na verdade, ele nunca andou de metrô. Seu meio de transporte era um UNO que ele havia ganhado do pai no seu aniversário de 18 anos. Era ele que Roberto usava diariamente para ir e vir da faculdade. Ele estudava direito.
                Sim, a vida de Beatriz era dura, mas apesar de tudo, ela era feliz. A pernambucana passava o ano inteiro esperando o carnaval. Havia qualquer coisa na sinfonia frenética do frevo e na batida pesada do maracatu que a deixava se sentindo plena, completa. Nos dias de folia ela não parava. Seus pés carregavam-na para cima e para baixo nas ladeiras de Olinda, nas ruas mal iluminadas do Recife Antigo. Era para o carnaval que ela vivia. Aquele era o seu espetáculo, seu balé de corpos nus e rostos mascarados. Roberto também gostava do carnaval... não exatamente do carnaval. Na verdade sua festa girava em torno da vodca, do whisky e da cerveja. Mas a parte preferida dele era sair de perto do pai. Ele não suportava aquele velho bigodudo tentando podar sua juventude diariamente. Neste ano, ele e seus amigos haviam decidido ir pra Olinda. No domingo de carnaval, enquanto pulava bêbado achando que estava dançando frevo, ele esbarrou numa garota. O nome dela era Beatriz. Ela era pernambucana.
                No domingo de carnaval Beatriz vestiu sua fantasia de aeromoça e foi para Olinda. Enquanto ela seguia encantada um dos incontáveis blocos da cidade, um cara bêbado esbarrou nela. Ela nem teve tempo de reclamar, e ele de pedir desculpas, pois o rapaz desmaiou por causa do excesso de álcool, ali mesmo. Beatriz ajudou a leva-lo para a casa em que ele estava hospedado. Lá ela descobriu que o nome dele era Roberto. Ele era mineiro.
                Depois de recuperados do susto, Beatriz e Roberto ficaram amigos, ou mais que isso. Ela falou-lhe sobre as maravilhas de sua terra, e o levou para conhecer o Recife Antigo. Ele fingia que escutava, mas na verdade não conseguia se concentrar em outra coisa que não fosse o riso fácil dela. Eles dançaram, beberam, se beijaram, riram e transaram. Foram dias mágicos tanto para Roberto quanto para Beatriz; isso até que chegasse a quarta-feira de cinzas. Ele partiu sem se despedir. Não que ele não quisesse mais vê-la; Roberto apenas não queria ter na memória a lembrança da despedida. Beatriz ligou inúmeras vezes para o número que ele deixou, mas ninguém atendeu, e jamais atenderia, pois Roberto havia capotado com o carro enquanto dirigia bêbado numa rodovia federal. Os quatro ocupantes do carro morreram na hora. Seria um engano dizer que a última coisa em que Roberto pensou foi o sorriso de Beatriz, pois na verdade foi o bigode do pai.
                No ano seguinte Beatriz voltou à Olinda, mas nem se lembrava de Roberto. Ela continuou seguindo os blocos que passavam, sentindo no fundo do peito a batida do maracatu e entregando-se à eletricidade do frevo, permitindo-se viver alguns dias de magia e descontrole, antes que a vida prosseguisse cinza.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

ANTIGOS SACRIFÍCIOS



O grande líder está velho
Seus discursos são ecos inaudíveis
Todos os olhares estão direcionados para ele
Mas palavras ditas
Não são palavras entendidas


Ergue-se a face do povo
Para a grande tempestade
Que está para chegar
Ouvir-se-ão outros ecos, outras vozes
São jovens os novos deuses,
Ouvidos e entendidos

Em seus trovões ressoam terrores
Mas, apesar do medo, os veneram
Não exigem sangue e adagas
Apenas toque, entrega e sussurros
São jovens os novos deuses
Morrem de amores e apenas morrem

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

MORRO A CADA FIM




Carrego em mim todos os medos do mundo.
                Acordo sem ar. O corpo quente e a alma gelada. Fantasmas que desconheço debruçam-se sobre mim, rindo, espiando, ferindo. Levanto. Caminho. Olho no espelho. Mas não é meu rosto que vejo refletido, e sim o de uma garotinha que chora com medo do pai alcoólatra. Corro dela, não a quero olhando-me assustada. Não quero me importar. Mas não há para onde fugir; tudo são espelhos a minha volta. Dores que não são minhas e que eu sinto.
                Derramo as mesmas lágrimas que uma mãe chorou pelo filho assassinado; sinto o mesmo terror que o jovem sentiu quando viu a arma apontada para sua cabeça; experimento o medo sentido pelo assassino antes de puxar o gatilho, o medo do futuro e do imutável. Não é esta minha história. Não existe sangue ou tragédia em minha alma, mas, então, por que sou obrigado a carregar a dor da mãe, do rapaz e do assassino? Quando foi decidido que devo transformar em arte a miséria do homem? Não existe beleza na dor e no medo. Colocam a arma do crime em minhas mãos e dizem “Faça-a bela”. Não posso, não devo. Sou igualmente assassino se uso a arma, não importa para qual fim. E para quê? Enquanto escrevo este texto, cada verbo rasga-me a alma, e você fica aí pensando no sorvete que está no congelador, ou em alguém que não lhe ama. Nego-me a escrever com sangue alheio.
                Na escola não nos ensinam a ser humanos. Não nos ensinam a chorar ou abraçar, a odiar ou ser odiados. Vivemos todos nus e vulneráveis. A pele exposta, o perigo próximo. Caminhamos desde o começo em direção ao fim. Podemos nega-lo, mas o fato é que ele não tarda a chegar. E enquanto isso, o que fazemos? Tentamos ser felizes, tentamos não sofrer... Pare de tentar! SIMPLESMENTE SEJA! Seja feliz, agora. Pare de ler este texto e vá tomar um banho de mangueira, ou tomar aquele sorvete que está na geladeira. Sofra também, sempre que possível. Não procure a dor, apenas sinta-a. Chore o suficiente para a ocasião, depois enxugue as lágrimas e erga a cabeça, e seja feliz novamente. Cuide bem das marcas que a tortura lhe deixar, exiba-as. Lembre-se das mãos trêmulas e do desespero. Sinta coçar a corda que você amarrou no pescoço. Transforme em história sua história. Sua dor é digna de arte, por mais terrível que seja.
                Não seja como eu, portador de todas as dores da humanidade. Não seja o artista; seja a arte. Acordo todos os dias com as mãos sujas de sangue, mas você pode fazer diferente. Você pode escolher, então não escolha sofrer além do necessário. Você não precisa disso para viver. Agora eu engatilho a arma a atiro num inocente. A desgraça dele é a matéria prima para minha arte. Escrevo como era magnífica a arma, e uso um parágrafo inteiro para dissertar sobre a beleza da dor. Sim, entreguei-me às correntes que tanto condeno. Sou um carrasco e não um escritor, mas você não precisa ser assim. Sai daqui, você não quer que o sangue espirre em seu rosto. Vá sentir seus próprios medos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

LAMA E CINZAS




Imagine a cena: uma garota, ajoelhada, observa atentamente um livro pegar fogo na sua frente. O cenário é uma floresta sombria e gélida, mas não silenciosa. Gritos ecoam entre as árvores, altos o suficiente para serem ouvidos a quilômetros de distância. Dezenas de homens e mulheres furiosos cercam a garota, empunhando tochas, facões, pás, toras de madeira e outros objetos capazes de ferir e matar. Um homem destaca-se da multidão. Ele aponta uma flecha para a menina indefesa no centro da clareira. Seus olhos estão cravados nela, mas ela parece não nota-lo; na verdade, ela parece não haver percebido ainda a horda furiosa que a cerca. Toda a sua atenção está posta no livro em chamas. Nada a perturba.

Este é o final da história; agora olhemos para trás, para o começo.

                Mais um dia cinza. A estação das chuvas havia chegado, e junto com ela, frio e tristeza. O Beco dos Enforcados era um verdadeiro lamaçal, repleto de pessoas apressadas esbarrando umas nas outras e apinhando as barracas do mercado, para êxtase dos vendedores. Cachorros esqueléticos dormiam sob as lonas; resto de comida apodreciam e misturavam-se à lama negra; ratos do tamanho de gatos esgueiravam-se pelos cantos. Apesar do cenário aparentemente caótico, tudo estava como deveria estar, não fosse pelo homem de vestes esfarrapadas que perseguia furtivamente uma garota através da multidão. Ela já o havia percebido, e tentava fugir e despista-lo de todas as maneiras possíveis, mas era inútil; ele não tirava os olhos dela. O espaço entre os dois ficava cada vez menor, não importava quanto esforço ela fizesse para escapar. A garota, por fim, deu-se por vencida, e abandonou todas as esperanças de conseguir fugir, mas, ao olhar para trás, percebeu que o homem não mais a seguia. Ela só teve tempo de parar e recuperar o fôlego, antes que uma mão grande e calejada agarrasse seu pulso e puxasse-a para uma viela deserta.
                — Por que você tentou fugir? — sussurrou o homem, com a voz carregada de uma fúria falsamente contida. Seus olhos estavam vermelhos, fazendo-o parecer com os demônios dos quais o pastor falava.
                — Eu não tentei fugir, Sr. Henrik. Eu só estava apressada.
                — O que você está escondendo?
                — Me solte Sr. Henrik. O senhor está me machucando.
                — Diga! — ele aproximou seu rosto do da garota, como uma fera farejando sua presa.
                — Eu não sei do que o senhor está falando!
                — Claro que sabe. Eu estou falando da minha filha, a Samantha. Você lembra dela? Claro que lembra; você estava lá quando tudo aconteceu; você e suas amiguinhas, que, por alguma razão que eu desconheço, também estão tentando fugir de mim. Agora, diga, o que vocês sabem que eu não sei?
                — Eu não sei de nada, senhor! Eu juro!
                — Você estava lá. Você viu!
                — Ela se jogou, senhor. Foi isso que aconteceu. Agora me deixe ir, por favor — a esta altura, a garota já se desmanchava em lágrimas. O terror impedia-a de respirar normalmente.
                — Nós dois sabemos que minha filha não se matou. Agora fale a verdade.
                — Eu já disse, senhor...
                — A VERDADE! — o pouco autocontrole que ele tinha abandonou-o completamente.
                — Foi um acidente! — ela não suportava mais, e desabou de joelhos aos prantos. — Foi um acidente.
                — Acidente? O que você quer dizer?
                — Eu não posso falar mais que isso, entenda...
                — Já perdi tudo o que tinha na vida. Eu não me importaria de ir para a forca porque matei a assassina da minha filha. Agora fale a verdade, ou eu juro que quebro seu pescoço aqui e agora.
                — Foi um acidente, Sr. Henrik. Nós não queríamos que aquilo acontecesse. Ela estava... dançando, e chegou perto demais da ponta. Nós iriamos tirá-la de lá, mas a Eva disse que estava tudo bem... então ela... caiu. Não pudemos fazer nada, senhor. Eu juro.
                — De que Eva você está falando? A filha dos Rudiger?
                — Sim, ela mesma. Mas não conte por aí o que eu falei ao senhor. Ela... — a garota calou-se e ficou pálida como a cera de uma vela. Aparentemente havia se lembrado de algo terrível, mas logo após esta reação inesperada, ela olhou George Henrik nos olhos, e voltou a falar com uma voz impressionantemente firme — Posso ir agora, senhor? Meus pais me esperam.
                — O que você ia falar sobre a Eva?
                — Eu de fato preciso ir.
                — Se ela tem alguma culpa na morte da minha filha, conte-me, por favor.
                A garota passou longos segundos encarando-o, como se tentasse enxergar sua alma através de pele e ossos. Ela parecia estar lendo um mapa. Só depois de seu minucioso exame, decidiu falar.
                — Não procure a Eva, Sr. Henrik. Ela não é a mesma de antes. Ela mudou depois que achou aquele livro.
                — De que livro você está falando?
                — O livro que ela encontrou na floresta. Ela não o larga mais. Fala sobre ele o tempo todo, e nos faz repetir as palavras que tem nele. O liamos na noite em que Samantha caiu.
                George engoliu em seco. O frio que ele sentia subir pela espinha era um sinal de que algo estava errado. Muito errado.
                — E o que tem nesse livro? — ele perguntou, temendo a resposta.
                — Coisas antigas. Coisas que não estão na Bíblia, e que ninguém deveria saber.

●●●

                — Isso é loucura George! São apenas crianças! — gritou o pastor, perdendo a pouca paciência que lhe restava.
                — Eu ouvi da boca dela! Ela disse que existiam “coisas antigas” no livro, que não estão na Bíblia. É bruxaria!
                — É tolice! — o pastor aproximou-se de George, e colocou a mão em seu ombro — Entendo que você esteja confuso...
                — Confuso? O senhor acha que eu estou confuso?! Minha filha despencou de um penhasco! Minha mulher foi embora gritando que eu era o culpado! MINHA VIDA ACABOU! E agora o senhor diz que estou confuso? Não, eu não estou confuso. Eu estou irado, e quero pegar o responsável pela morte de Samantha, não importa se é uma garotinha ou o próprio Diabo!
                — Controle-se homem. Você está na casa de Deus. Sei o quão doloroso é o que você está sentindo, mas não podes sair por aí acusando garotinhas de praticar bruxaria. São crianças. Tudo não passa de um mal entendido, tenho certeza disso. Escute-me. Vou até a casa dos Rudiger e pedir para que Eva me mostre este livro, e, se eu encontrar algo de estranho nele, você será o primeiro a saber. Estamos de acordo? — George anuiu de cabeça baixa. — Ótimo. Agora vá para casa. Vai ficar tudo bem.

                Mas não ficou tudo bem. Antes de o Sol se por, uma camponesa, que trabalhava próximo à casa dos Rudiger, encontrou os corpos do pastor, da mãe e do pai de Eva jogados no limite da floresta. Onde deveriam estar os olhos, havia apenas buracos escuros, e suas entranhas serviam de jantar para incontáveis e estridentes corvos.
                O caos se instalou. Portas foram arrombadas. Garotinhas foram arrancadas dos braços de suas desesperadas mães. George interrogou uma por uma, inclusive a garota que havia encontrado mais cedo no mercado. Ela não parecia a mesma menina assustada de antes. Não importa o quão ameaçada ela fosse, não falava nada. No entanto, quando George já havia desistido de extrair alguma informação dela, ela falou:
                — Desista. Vocês não vão conseguir pega-la. Ela não é como o resto de nós. Ela sabe coisas que não sabemos; que ninguém sabe. Você viu o que ela fez com os próprios pais, agora imagine o que ela vai fazer quando colocar as mãos em você. Desista desta loucura enquanto pode.
                — Onde ela está?
                — Agora vejo de onde Samantha tirou toda aquela teimosia. Ela não queria mais participar dos rituais, mas é claro que nunca a deixaríamos sair. Você precisava ter escutado ela gritando quando a Eva a empurrou do penhasco. Foi hilário! Parecia uma porca! — a garota caiu na gargalhada, gargalhada esta que não parou quando George deu-lhe um bofetão forte o suficiente para derrubar um homem.
                — Queime-a — disse George para um jovem de olhar assustado que acompanhava o interrogatório.
                — Como, senhor?
                — Queime-a. Ela e todas as outras. Faça uma grande fogueira na praça e queime-as. E procure voluntários para entrar comigo na floresta. Vamos caçar aquela putinha satânica.

                George e seus companheiros partiram deixando para trás uma gigantesca pira cheia de garotas em chamas. Ainda podiam-se ouvir os gritos, mesmo de muito longe. Não havia lua ou estrelas no céu, mas havia tochas na terra. Muitas tochas; empunhadas por uma multidão furiosa. Um exército de bolas de fogo.
                Não foi difícil achar Eva. Aparentemente, ela não estava tentando se esconder. Encontraram-na ajoelhada no meio de uma clareira, observando um livro — o livro — pegar fogo. Ela não esboçou nenhuma reação quando a multidão a cercou, nem quando George deu um passo à frente e apontou uma flecha para ela. Ele esperou que Eva falasse ou fizesse algo, mas nada aconteceu.
                — Por que você está queimando o livro? — George não suportava o silêncio dela; era perturbador.
                Eva ergueu a cabeça, e só então pareceu nota-lo, mas não demostrou mais interesse do que antes.
                — Não preciso mais dele — era gelo a sua voz, fria e penetrante.
                Ela levantou-se lentamente, e começou a despir-se. A cena deixou todos os presentes horrorizados, principalmente quando puderam enxergar o que havia sob seu vestido. Inicialmente pensaram ser cortes, finos e tortos, cobrindo cada sentimento de sua pele, mas só depois de olharem-na mais detidamente é que perceberam que eram palavras. Um monte delas. Ainda brotava sangue de algumas. A vadia havia rasgado os textos do livro em sua própria pele.
                George não esperou que ela fizesse mais nada; puxou a corda do arco e preparou-se para atirar. Eva limitou-se a olha-lo com desdém, e falou:
                — Vocês são tão fracos.
                As palavras que ela disse depois disso eram incompreensíveis para os presentes, mas todos perceberam o quão fortes elas eram. Havia poder nelas. O poder sobre a vida e a morte.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

ESTE LUGAR QUE JAMAIS EXISTIU

Quais palavras devo usar para dizer que falhei? Como se chamam as histórias em que o protagonista entra e sai de mãos abanando, sem amores perdidos ou paixões consumadas? Se é verdade que na poesia tudo se sente, então me fale como pensam as pedras, que da beira da estrada observam a vida passar, sem jamais voltar ou parar, porque se parar, vida deixa de ser, e aí as pedras já não enxergam mais nada. No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Sou pedra, mas não estou no meio do caminho. Não sirvo para os poemas.
                Escuto gargalhadas e sinto-me feliz por elas. Boas lembranças. Mas olho para trás e percebo que não era eu que ria, quem cantava ou quem vivia. É estranho lembrar-se de algo que você não viveu; sentir coçar na pele feridas que nunca foram abertas. Aterrorizado, dou meia volta e corro em direção aos momentos felizes. Não os meus, mas os de alguém que passou por mim. Não era um sorriso; eram só dentes à mostra. Pensei que havia dançado, mas percebi que eu só não queria ficar encostado na parede. Lembro-me do calor dos abraços, mas eu nem estava lá. Nunca estive.

                — O que sou eu então? Um fantasma?
                — Não. Fantasmas sentem e falam, assustam e são assustados. Fantasmas já viveram um dia, mas você sequer abriu os olhos. Você é o vento na janela, ou a chama solitária de uma vela. Você parece se mexer, mas não mexe.
               
                Não pertenço à minha história. Fui feliz num lugar que jamais existiu. Percebo agora que sou a corrente, e não o acorrentado. Sou o pássaro devorador de deuses. Sou o que acontece entre um capítulo e outro, aquilo que ninguém escreveu e que a ninguém interessa.
                Máscara grega. Farsa. História inventada. Passado inexistente. Quarto escuro. Tela em branco. Sou a fechadura para a qual nunca fabricaram uma chave.
                Entrego esta caneta em suas mãos. Pegue-a. Não tenha medo. Escreva minha história. Dê títulos aos capítulos e numere as páginas. Coloque qualquer coisa de magia, de surreal. Crie uma cena em que a lua me ilumine, em que eu pegue na mão de alguém. Não receie em escrever tragédias ou cenas fortes, mas não se esqueça de me fazer sorrir de vez em quando. Não precisa avisar-me quando a tinta da caneta estiver acabando, apenas escreva o mais intensamente que você conseguir, até o fim. Mas comece agora! JÁ! Estou pronto para nascer.