Atendendo a pedidos, aqui está a continuação de Doce escuridão.Peço desculpas por demorar tanto para postá-la, mas uma mistura de garganta inflamada e bloqueio criativo me impossibilitaram de escrever. Mas o que importa é que acabei, e aqui está o fim... na verdade não é exatamente o fim, pois terei que dividir a continuação em duas partes. Sem mais rodeios, aqui prossegue a história de Kevin e Sophie, mas serão eles os mesmos que conhecemos?
Boa leitura.
LONGE, MUITO LONGE
Era uma vez, numa aldeia esquecida
pelo resto do mundo, um casal de irmãos. Seus nomes eram Kevin e Sophie. Eles
viviam felizes com seus pais e com toda a gente daquele lugar, até que, certo
dia, uma desgraça se abateu sabre eles.
Uma horda de bárbaros invadiu o
povoado na calada da noite. Saquearam e queimaram as casas, estupraram as
mulheres e mataram todos aqueles que se atreveram a lutar, inclusive o pai de
Kevin e Sophie. Da mãe deles não se sabia o paradeiro. Ela havia sido arrastada
pelos invasores para fora de casa, aos gritos. Os irmãos conseguiram fugir
esgueirando-se pelos fundos da casa e correndo pela estrada, encobertos pelo
manto de escuridão de uma noite sem luar. Caminharam durante dias e mais dias,
e, numa noite, quando haviam se convencido que já estevam relativamente
seguros, depararam-se com o acampamento dos saqueadores montado na floresta.
Eles fugiram desembestados, como se a própria morte estivesse caçando-os, esticando
suas frias mãos para arrasta-los para o vazio. Nesta desesperada fuga, foram
parar numa floresta assombrada, onde as árvores tinham vida e fome. Mesmo
lutando com todas as suas forças contra os galhos e raízes, eles acabaram sendo
subjugados. Quando tudo parecia estar perdido, uma mulher misteriosa apareceu e
livrou-os do abraço da morte, mas não por muito tempo. A estranha que os salvou
na verdade era uma bruxa com sede de sangue. Ela sequestrou Sophie e tentou
sugar a vida da pobre garota, mas Kevin chegou a tempo de impedir os planos da
bruxa de se concretizarem. Ele arrancou a cabeça dela com um machado, e
conseguiu salvar a irmã, mas a jornada deles não acabava aí... Eles deviam
encontrar sua mãe, e, caso ela ainda estivesse viva, libertá-la de seu
cativeiro, não importa o quão difícil isso fosse.
A estrada era sombria, e por mais
terríveis que fossem os demônios que eles encontrariam no caminho, o pior ainda
estava por vir.
●●●
— Chegou a hora — disse Kevin, deitado
de bruços na terra e olhando para o horizonte.
Sophie levantou-se e foi para junto do
irmão, acompanhando-o em sua vigia. O dia estava nublado, e tudo parecia estar
coberto por uma fina película de cinzas. Kevin não deu atenção para a irmã
quando ela sentou-se do seu lado. Seus olhos continuaram voltados para longe,
muito longe...
— Você tem certeza? Não podemos
esperar mais um pouco? Quem sabe...
— Não, não podemos mais esperar —
cortou o irmão. — Há cinco anos nós procuramos por ela, e agora que finalmente
temos alguma chance de encontra-la, você quer “esperar mais um pouco”?
— Eu não... não foi isso... Me
desculpe. Você está certo. Quando iremos então? Vamos esperar anoitecer, ou...
— Agora.
Sophie não falou mais nada, apenas
lançou um último olhar para o castelo que estavam espionando. Uma ilha negra
num mar sem vida. Aquelas altas torres pareciam mãos com garras afiadas,
tentando arrancar os próprios deuses do céu e joga-los na terra. Há cinco anos
eles procuravam a mãe. Andaram por terras estranhas e sombrias; depararam-se
mais de uma vez com a crueldade dos bárbaros, e seguiram seu rastro de
destruição, mas nunca haviam conseguido nenhuma pista do paradeiro da mãe...
até agora. Ao que parecia, todos os
prisioneiros eram levados para aquele castelo, depois se decidia o que seria
feito deles. Com certeza haveria alguma pista, alguma resposta, entre aquelas
paredes, e eles precisavam entrar lá. Era muito arriscado, eles sabiam; mas
agora que haviam chegado tão longe, não podiam desistir.
O tempo transformou-os. Os desafios e
perigos que encontraram no caminho os obrigaram a crescer mais rápido que os
demais, e a trilharem sozinhos seus próprios caminhos. As mãos de ambos já
estavam sujas de sangue. Não havia mais inocência neles, apenas uma alma
cavernosa e cheia de ecos.
Desceram juntos do morro de onde
estavam espionando, e caminharam em direção aos portões da muralha. No meio do
caminho Sophie pegou um pouco de lama e espalhou pelo corpo, e Kevin amarrou as
mãos dela e arrastou-a assim pelo resto do trajeto. Chegando perto do castelo,
ele levantou o capuz e baixou a cabeça, mascarando-se com sombras. Dois vigias
guardavam um portão secundário, para o qual eles se dirigiram. Quando Kevin se
aproximou, os guardas cruzaram suas lanças, impedindo que os irmãos passassem.
O da direita perguntou:
— O que vocês querem aqui?
— Encontrei essa vadia escondendo-se
na floresta perto de Caimar, e vou vendê-la como escrava — respondeu Kevin, sem
levantar o rosto. Ele e a irmã já haviam causado problemas suficientes para os
bárbaros, e se fossem reconhecidos, tudo estaria perdido.
O guarda da esquerda aproximou-se de
Sophie. Ele era mais alto que seu companheiro, e seus braços eram tão grossos
quanto troncos. Sua espada balançando pesadamente, presa em seu cinto. Ele
parou na frente de Sophie, agarrou a bunda dela com sua grande mão e puxou-a
para si. Ela não tentou resistir.
— Há muito tempo não como uma boa
puta. O que você acha se ficarmos com ela, Isy? — gritou ele para o outro
guarda.
— Ela é minha prisioneira — disse
Kevin, calmamente.
O vigia que estava junto dele ficou
encarando-o, ou encarando o capuz, pelo menos. A cada segundo que passava,
Kevin ficava mais apreensivo, mas procurou esconder isso. Por fim, o guarda
falou:
— Podem passar.
Sophie e o irmão relaxaram neste
momento, e passaram pela muralha, mas, depois de terem dado alguns poucos
passos, uma voz chegou até seus ouvidos:
— Esperem.
Os dois pararam no mesmo momento.
Ouviram passos aproximando-se deles.
— Abaixe o capuz — disse um dos
guardas para Kevin.
Ele virou-se para o homem, mas não o
obedeceu.
— Abaixe o capuz agora.
A esta altura o segundo guarda já se juntava
ao seu colega, mas Kevin não obedeceu. Foi só quando os dois guardas já estavam
próximos dele, e pareciam estar a ponto de arrancar-lhe o capuz a força, que
ele o abaixou, e encarou-os. Os vigias olharam-no sem grande interesse, até que
aquele chamado Isy franziu o cenho, apertou os olhos, e disse:
— Eu conheço você.
— Não, não conhece — disse Kevin com
toda a calma do mundo. Antes que o homem pudesse dar mais uma palavra, Kevin
puxou o punhal da cintura e cortou a garganta dele, fazendo jorrar uma cascata
de sangue pelo pescoço e peito do vigia. O segundo guarda nem teve tempo de
reagir, pois Sophie já havia se soltado das cordas e caído sobre ele. Agora ambos
estavam jogados, com as gargantas cortadas, numa poça de sangue que crescia
cada vez mais. Suas espadas permaneciam nas bainhas.
— Vamos nos livrar dos corpos e sair daqui
antes que alguém dê o alarme de invasores — disse Kevin à irmã, limpando o
punhal no manto do guarda mais alto. Eles esconderam os cadáveres dentro de uma
carroça que estava próxima ao portão, e foram em direção ao castelo.
As ruas estavam desertas, pois ainda
era muito cedo e o sol mal havia acabado de nascer. As janelas das casas ainda
estavam fechadas, mas já era possível ouvirem-se sons dentro delas. Esgueiraram-se
por becos e vielas, procurando fugir dos guardas que rondavam a cidade. Quando
passaram por uma fonte, Sophie limpou a lama seca que cobria seu rosto, e
continuaram a andar. Encontraram algumas caixas cheias de garrafas vazias jogadas
numa esquina. Cada um pegou uma. Quando eles chegaram às ruas mais amplas que
rodeavam o castelo, uma corneta tocou em algum lugar distante, provavelmente
nas muralhas. Não muito depois, três guardas passaram correndo por eles. Um
deles parou e perguntou-os:
— Para onde estão indo?
— Estamos levando estas garrafas para
a cozinha do castelo — mentiu Sophie.
O homem não se deteve mais, apenas
bufou aborrecido e seguiu correndo atrás de seus companheiros. Kevin e a irmã
por fim chegaram ao castelo. Entraram numa rua estreita e suja, cercada de
altos muros de ambos os lados. Uma grossa porta de madeira destacava-se na
parede de pedras ásperas. Não havia guardas vigiando-a. Bom. Abriram-na e entraram no que parecia ser um depósito.
Linguiças e grandes pedaços de carne salgada pendiam do teto. As prateleiras
estavam cheias de queijos, especiarias e potes de barro. Sacos de trigo e
cevada amontoavam-se pelo chão, juntos com caixas e mais caixas de legumes.
Eles não largaram as caixas com garrafas. Passaram por uma portinha e saíram
numa ampla cozinha. Algumas poucas pessoas trabalhavam amassando e assando
pães, ou cortando legumes. Nenhuma delas deu atenção aos intrusos. Largaram as
caixas sobre uma mesa e continuaram. Da cozinha foram para um refeitório cheio
de bancos e mesas compridas, depois um amplo corredor, e em seguida outra
cozinha, que estava vazia. Quando entraram em um corredor de teto alto, cheio
de janelas em forma de arco no topo das paredes, ouviram passos na outra extremidade
dele. Eles deram meia volta, mas já era tarde demais. Seis ou sete soldados
barraram a passagem por onde eles tinham entrado, com espadas e lanças em punho.
— Onde vocês pensam que vão?
Sophie e Kevin viraram-se, e deram de
cara com o guarda que haviam encontrado na rua próxima ao castelo. Ele estava
acompanhado de três soldados, um deles com as mãos manchadas de sangue.
— Os levem para a rainha — ordenou aos
outros. — Ela saberá o que fazer com eles.
Não havia para onde fugir, e nada que
pudesse ser feito. Eles haviam fracassado.
●●●
Os guardas arrancaram todas as armas
que eles traziam, e arrastaram-nos pelo castelo. A cada corredor e porta que
passavam, a esperança diminuía no coração dos dois irmãos. Aquele labirinto de
pedras estranhas havia os engolido, assim como engolira muitos antes deles. Fomos devorados, como nossa mãe...
Chegaram por fim a uma descomunal
porta de carvalho e ferro em forma de arco. Sentinelas guardavam-na de ambos os
lados, mas nem sequer lhes lançaram o mais sutil dos olhares, apenas abriram a
porta. Um salão gigantesco desdobrou-se na frente deles. Incontáveis lareiras
brotavam das paredes, mas nenhuma delas estava acesa. Toda a luz que iluminava
o local era proveniente de altos vitrais que decoravam as paredes; fora isto,
não havia mais nenhum adorno. Tudo ali era sombrio e triste, e por mais
coloridos que fossem os vitrais, não eram capazes de diminuir a morbidez que
brotava dos gestos e olhares dos ali presentes. Não eram muitos; nada além de
um punhado de guardas, criados e gente do povo. Dois tronos rústicos estavam do
outro lado do salão, vazios.
Os guardas arrastaram Kevin e Sophie
para a outra extremidade do salão, para perto dos tronos. Todos os olhares
estavam postos neles. As algemas que prendiam os pulsos de Kevin coçavam, mas
ele tentou não demonstrar desconforto. Agora, mais do que nunca, ele não podia
parecer fraco. Sua única preocupação era a irmã. Ela não era como ele. Sophie
ainda preservava um pouco da sua inocência dos tempos de criança, mesmo que
carregasse tantas mortes nas costas quanto ele. Para Kevin, ela não passava da
sua irmãzinha, que ele precisava proteger a qualquer custo.
Uma trombeta soou solitária em algum
lugar do salão, e um arauto gritou:
— Todos saúdem Sua Majestade, a Rainha
Eliza, Senhora das Terras Azuis, de Tharnatia e do Mar de Outono.
Todos os presentes silenciaram seus
poucos murmúrios e ajoelharam-se. Um dos
guardas que acompanhava Kevin deu-lhe uma cotovelada em suas costelas, e lhe
obrigou a ajoelhar-se também. Ele conseguiu ver, pelo canto do olho, a irmã
fazendo o mesmo. Passos ecoaram solitários pelo salão. Madeira sobre pedra.
Vagarosos.
Toc,
toc, toc...
Eles ficavam cada vez mais próximos. Os ecos que eles faziam
lembraram a Kevin do palácio da bruxa, e um arrepio lhe subiu pela espinha. Uma
sombra passou ao seu lado, mas ele nada enxergou além da barra de uma saia
debruada de renda, e sapatos de salto alto decorados com pedrarias.
Toc,
toc, toc...
O som parou.
— Levantem-se — disse a rainha.
O coração de Kevin começou a palpitar,
mas ele não sabia por quê. Um guarda agarrou seu ombro e puxou-o para cima,
bruscamente, então começou a falar:
— Estes aqui invadiram o castelo,
Vossa Majestade. Eles assassinaram dois dos nossos guardas e...
Tudo se tornou silêncio.
No momento em que os olhares de Kevin
e Sophie cruzaram-se com o da rainha, o mundo deixou de fazer sentido.
Aquele
rosto... estava diferente... mas ainda era o mesmo. Sim! Ainda era o mesmo!
A
palavra
veio à boca de Kevin, e ali ficou, trancada.
Sua garganta tornou-se um abismo, e seu coração, e sua alma...
Mãe,
sussurrou uma voz do fundo abismo.
Ela
está viva... ela é a rainha. Minha mãe é a rainha.
A mulher sentada no trono, mãe e
rainha, encarou os dois prisioneiros com total apatia. Seu rosto era uma mascara
vazia e inexpressiva. Belo penteado, joias, vestido luxuoso e postura soberana,
mas faltava-lhe vida e verdade.
●●●
(continua)
2 comentários:
Gostei dessa parte da estória. Quero ler mais!
Quando eu li "— Os levem para a rainha — ordenou aos outros" imaginei quem seria. Mas achei que só contaria na próxima parte.
Muito bom. Como sempre prendendo até a última letra.
www.cchamun.blogspot.com.br
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