Chão úmido. Cheiro de urina.
Escuridão. Kevin tentava se acomodar da melhor maneira possível encostado à
parede da masmorra. O silêncio seria absoluto, não fosse pelo som de sua
respiração e um zunido incessante em seus ouvidos. Ele ainda estava confuso,
mas já conseguia por os pensamentos em ordem. Tudo foi rápido demais, estranho
demais.
Num momento eles caminhavam furtivamente
pelo castelo, no outro eram mandados para as masmorras pela mulher que achavam
ser mãe deles. Ela não titubeou, não demonstrou o menor sinal de ressentimento,
apenas disse: “Joguem eles nas masmorras. O rei irá querer interroga-los quando
voltar.”
Será
que eu me enganei? Pensou Kevin, pela centésima vez. Não, não posso ter me enganado. Sophie
também achou o mesmo que eu. Eu vi nos olhos dela... ou será que eu imaginei
isso? Mas, se eu não estiver enganado, se a rainha for mesmo a minha mãe, por
que ela jogaria os próprios filhos na masmorra? Rainha? Como assim “rainha”?
Como isso aconteceu? Será que ela é a esposa do rei? Claro que ela é a esposa
do rei, seu imbecil! Mas... o que aquele monstro fez...
Um som distante interrompeu os
questionamentos de Kevin. Um som metálico, uma tranca talvez... e chaves. Agora
se ouviam passos, e de mais de uma pessoa, ao que parecia. Eles ficavam cada
vez mais próximos. Outra tranca. O ranger de uma porta. Os passos já estavam
quase na porta da cela de Kevin. Eles
vieram me interrogar. Acabaram de torturar minha irmã, e agora vão me torturar.
Ele teve vontade de chorar, de gritar. Gritar pelo nome da irmã, como fez
no palácio da bruxa, mas, como da outra vez, não obteria resposta.
Os passos pararam. O barulho de chaves
foi seguido pelo da tranca. A porta da cela se abriu com um rangido alto. Uma
sombra encapuzada estava parada do outro lado do portal, observando-o. Mesmo
tentando, Kevin não conseguiu se levantar, pois seus músculos estavam tensos e
doloridos. A sombra caminhou até ele vagarosamente, e parou.
— Kevin, sou eu — disse Sophie,
baixando o capuz.
Ele deu um salto, ignorando toda a dor
que aquilo lhe causou. Correu até a irmã, e segurou o rosto dela entre suas
mãos trêmulas, como que para ter certeza de que não era um sonho — ou um
pesadelo. Kevin ria e chorava ao mesmo tempo. Ele nunca havia ficado tão feliz
de ver Sophie.
— Como você conseguiu fugir? Você...
Você está bem? — Kevin perguntou com a voz embargada.
— Está tudo bem. Ela me ajudou.
Foi só aí que Kevin reparou em outra
pessoa encapuzada, que aguardava silenciosa na entrada da cela. Ele sentiu seu
coração queimar e se expandir. Mesmo sem poder ver o rosto de sua misteriosa
salvadora, sorriu... sorriu como não sorria a cinco anos. Existia vida no mundo
outra vez. Eu estava certo.
A mulher misteriosa jogou o capuz para
trás e ficou olhando-o, admirando-o. Ela lhe abriu os braços, e Kevin jogou-se
entre eles.
— Filho.
— Mãe.
Kevin sentia-se mais leve, quase a
ponto de erguer-se do chão e voar até o céu. Toda a dor e incerteza que ele
carregara nos últimos anos pereceram evaporar, e delas não restara nada além de
lembranças distantes, como a sombra de sua história. Ele não queria se soltar
daquele abraço; não queria descer dos céus. Nada mais importava, pois a vida
voltou a ser bela.
— Eu tive medo... tive medo de não te
ver mais... medo de que você estivesse... — Kevin não sabia mais como
pronunciar aquela palavra.
— Está tudo bem agora. Eu estou aqui.
Estamos juntos novamente.
Kevin soltou-a e olhou em seus olhos.
Eram os mesmos olhos verdes dos quais ele se lembrava, mas o resto estava
diferente. Ela estava mais “exuberante”. Os questionamentos assaltaram Kevin
todos de uma vez. Um mar de dúvidas.
— O que aconteceu com você? Por que...
você virou rainha?
A felicidade deu lugar ao pesar na
face de Anne — este era o nome verdadeiro dela. Ela olhou para o chão, e, só
depois de muito tempo, falou:
— É uma longa história. Não temos todo
esse tempo. O que você precisa saber é que não tive escolha. O rei se apaixonou
por mim e me forçou a se casar com ele. Tive que abandonar minha história e
esquecer quem eu era. Fui obrigada a ver e fazer coisas horríveis, mas, mesmo
assim, nunca deixei de pensar em vocês, nem um dia sequer. A esperança de
reencontra-los um dia foi a única coisa que me impediu de fazer uma loucura —
ela falou isso com uma frieza impressionante. Os anos que ela havia passado
naquele castelo haviam-na transformado numa mulher forte. — Não pude fazer nada
quando vocês entraram na sala do trono. Se eu tivesse tentado algo, os soldados
nos matariam. Agora vamos sair daqui antes que alguém perceba que eu não estou
no meu quarto, e que a cela da sua irmã está vazia. Tome, isto é seu — ela
entregou a Kevin a espada e o punhal dele. — Consegui pegar antes de fugir.
Anne caminhou com passadas largas para
a porta, mas antes de poder se distanciar muito, Kevin falou:
— Mãe?
— Sim?
— Não vou te perder de novo.
Ela parou, virou-se, e sorriu. Seus
olhos encheram-se de lágrimas.
— Você é igual ao seu pai. Os dois são
— ela disse, agarrando Sophie pela mão. — Vamos.
Enquanto eles corriam pelos corredores
subterrâneos do castelo, Kevin perguntava-se se conseguiriam de fato fugir.
Havia guardas espalhados por todos os lados, e não demoraria muito até que
começassem a caça-los. Tinham que sair do castelo, cruzar a cidade e passar
pelas muralhas, tudo isso antes que soasse o alarme. Parecia impossível.
— Onde está o rei? — ele perguntou.
— Garvan foi cuidar de revoltosos
perto do Mar de Outono. Não deve voltar até a próxima lua cheia — respondeu
Anne.
— É verdade que ele é um... monstro? — Sophie perguntou, ao mesmo
tempo temerosa e encantada.
— Não que eu saiba, mas ele com
certeza não é um homem comum.
Os túneis pareciam não ter fim. Cada
segundo ali embaixo parecia um minuto, e cada minuto, uma eternidade. Nada dava
sinal da passagem do tempo. O mundo resumia-se a escuridão e ecos. As chamas do
archote que Anne carregava tremulavam, enchendo o espaço ao redor deles de
sombras, companheiras observadoras e silenciosas. No fim de um corredor
especialmente longo, deram de cara com uma porta de ferro. Anne pegou as chaves
e destrancou-a rapidamente. O rangido que ela fez ao se abrir seria suficiente
para acordar todos os mortos das redondezas. Agora Kevin tinha certeza de que
seriam descobertos, e logo. Passaram por outras tantas portas, de madeira e de
ferro; subiram escadas; cruzaram corredores e mais corredores, até que, por
fim, entraram numa sala de pedras rústicas, com lustres velhos pendurados no
teto e janelas altas guarnecidas por grades. Existia uma única mesinha na sala,
colocada num dos cantos do cômodo. Havia sangue sobre e em volta do móvel, e um
par de pés calçados com botas projetava-se de detrás dele. Kevin olhou para a
mãe, procurando uma explicação, mas ela ignorou-o.
Saíram pela outra porta que havia na
sala, e prosseguiram com sua fuga. Anne guiou-os através do castelo até uma
torre na ala leste. Para evitar encontrar guardas e criados, tiveram que pegar
um caminho mais longo, cruzando corredores empoeirados e quase abandonados.
Subiram até o último cômodo da torre, onde não havia nenhum móvel além de um
espelho trincado e manchado. Uma enorme janela em forma de arco abria-se para o
mundo exterior. Ela estendia-se do chão ao teto, como uma porta abrindo-se para
o céu. Uma porta, não uma janela. Kevin
não conseguia entender porque sua mãe havia os levado até aquele lugar. Por
mais que perguntasse o motivo daquilo, ela se negava a responder.
— O que estamos fazendo aqui? — ele
perguntou novamente, depois da mãe trancar a porta atrás deles.
— Esta torre é chamada de Torre de
Eva. Dizem que aqui existe uma passagem secreta que leva para fora do castelo.
Procurem pelas paredes, eu vou...
— Como assim dizem? A senhora não tem certeza? — perguntou Sophie, aturdida.
— Essa é nossa única chance. Colocaram
mais guardas na muralha depois do que vocês fizeram, e se tentássemos fugir
pelos esgotos, talvez nunca mais conseguíssemos sair de lá. Não temos escolha.
Sophie e Kevin ficaram tateando as
paredes, empurrando cada pedra que alcançavam, enquanto Anne movia com
dificuldade o pesado espelho. Não havia nada atrás dele. Ela juntou-se aos
filhos no enxame às pedras, mas, mesmo assim, não obtiveram nenhum resultado. Eles
já haviam desistido das paredes, e começavam a tatear o chão, quando um ruído
indistinto chamou-lhes a atenção. Os três ergueram a cabeça e apuraram os
ouvidos, e só depois de algum tempo reconheceram ser um assovio.
— Deve ser só um pássaro lá fora —
Kevin deu de ombros.
O som não cessou, e ficou cada vez
mais próximo.
— Não, não é um pássaro — disse Anne,
levantando-se rapidamente. — Esse som vem daqui de dentro da torre.
Kevin e Sophie mal tiveram tempo de se
levantar e pegar suas armas, pois a porta espatifou-se por inteira, sem o menor
aviso prévio. Lascas de madeira voaram em todas as direções, como um enxame de
abelhas, obrigando-os a proteger os olhos. Quando voltaram a olhar para a
entrada do cômodo, encontraram um homem parado onde antes ficava a porta,
observando-os e assoviando.
— Encontrei vocês — o homem disse, com
uma voz ao mesmo tempo dura e comedida.
Ele tinha pelo menos uns dois metros
de altura, e um corpo muito musculoso. Volumosos cabelos negros emolduravam um
rosto anguloso, de onde dois grandes olhos cor de mel examinavam os presentes.
Ele parecia estar achando graça em tudo aquilo, pois um tímido sorriso
estampava-se eu seu rosto.
— Garvan, o que você está fazendo
aqui? — Anne soou impressionantemente decidida ao dizer essas palavras.
— Você?
Onde está o “Vossa Majestade”?
— Dane-se a majestade.
— Oh! Parece que alguém aqui se
esqueceu dos modos, e também se esqueceu de me apresentar nossos convidados —
disse Garvan, olhando para Sophie e o irmão.
Anne ficou calada, encarando o rei.
Kevin estava impressionado com a força e a coragem da mãe. Ela, assim como os
filhos, havia mudado muito nos últimos anos.
— É um grande prazer conhecer os
filhos de minha esposa, e...
— Deixe-os ir. Fique comigo. Eles não
têm nenhuma serventia para você. Deixe-os
ir — Anne suplicou; sua voz já não soava tão dura assim.
— Nenhum de vocês sairá daqui... vivo.
Garvan saltou para frente, indo na
direção de Anne. Sophie tentou atingi-lo com seu punhal, mas ele foi mais
rápido e deu um soco nela, jogando-a contra a parede. Isso aconteceu numa
fração de segundo, e antes que Anne pudesse reagir, Garvan já apertava sua
garganta e erguia-a do chão. Ela lutava inutilmente contra a descomunal mão que
envolvia seu pescoço.
— SOLTA A MINHA MÃE! — Kevin partiu
para cima dele empunhando a espada com as duas mãos, e conseguiu abrir um corte
profundo no braço com o qual Garvan segurava Anne. Ele largou-a imediatamente.
O rei olhou indiferente para o corte
no braço, do qual não parava de jorrar sangue. Contemplou-o durante um tempo, e
depois, com a mesma frieza, virou-se para Kevin e disse:
— Você ainda não entendeu que vai
morrer, não é?
Um súbito tremor atacou o corpo de
Garvan, mas ele sorria. Um sorriso sádico e cruel, e feroz, e mortal. Suas
pernas curvaram-se num ângulo estranho, e seus pés transformaram-se em patas.
De suas mãos brotaram garras, e pelos negros começaram a cobrir todo o seu
corpo, corpo esse que ficou ainda mais musculoso. Seu rosto esticou e
afinou-se, dando lugar a um focinho. Suas orelhas cresceram, junto com os
dentes, mas os olhos continuaram os mesmos. A besta ficou parada, arfando,
olhando para tudo e nada ao mesmo tempo, até que direcionou sua atenção para
Kevin.
— Onde nós paramos? — sua voz era
rouca e cheia de ecos. — Ah sim! Na parte em que eu te explico que você vai
morrer.
O lobisomem — ou o que quer que ele
fosse — atirou-se sobre Kevin com a boca arreganhada e os dentes a mostra.
Kevin girou a espada no ar, mas não conseguiu atingir a fera, só retarda-la.
Furioso, Garvan investiu novamente, agarrando a frente das vestes de Kevin e
jogando-o contra a parede. Ele tentou fugir rastejando, mas foi lento demais; a
besta segurou uma de suas pernas e atirou-o do outro lado do cômodo. Kevin
chocou-se contra o espelho, fazendo uma chuva de cacos de vidro cair sobre si.
Seu corpo estava muito ferido, mas ele não sentia dor, apenas um desejo irracional
de salvar a si e a família. Ele tateou em volta, mas não encontrou a espada, e
o punhal também havia sumido. Tudo o que achou foi uma infinidade de cacos de
vidro. A lembrança da bruxa veio e foi embora num lampejo, mas foi o suficiente
para deixa-lo sem ar nos pulmões. As vidas da mãe e da irmã dependiam dele, mas
não havia nada que pudesse fazer para salvá-las. Por um momento, desejou ter
sido queimado junto com o pai na aldeia, cinco anos atrás.
Ele arrastou-se debilmente sobre o
vidro espatifado, procurando pela espada. O chão vibrava com os passos de
Garvan. Kevin podia sentir a fera se aproximando; os olhos postos nele, prestes
a atacar. Ele enxergou a arma, mas ela estava muito distante; antes que
conseguisse alcançar, seu corpo já repousaria destroçado sobre o chão de pedra
fria. Um incrível sentimento de aceitação assaltou-o, e ele reconheceu que
aquilo era o fim. Mãe. Sophie. Seu
coração doía por saber que elas não teriam um destino diferente do seu, mas
pelo menos estavam todos juntos novamente. E pela última vez. Acabou, ele pensou.
Um grito — um urro — de gelar a espinha
ecoou pelo cômodo. Aquilo, definitivamente, não era humano. Foi o som mais
próximo de um trovão que Kevin já havia escutado. Ele rolou para cima e
deparou-se com Garvan em pé, sobre ele. Seu corpo estava arqueado e ele
respirava pesadamente. Suas mãos tremiam descontroladas, e uma flecha estava
cravada no seu ombro direito. Antes que a fera se recuperasse do ataque, outra
flecha atingiu-o, enterrando-se no seu abdômen, forçando-o a dar alguns passos
para trás. Kevin levantou-se com dificuldade e olhou em volta. Sua irmã estava
em pé próxima à porta, terminando de enfiar uma flecha em seu arco e apontando
para Garvan. Sangue saia de um corte em sua testa, manchando metade do seu
rosto, mas ela estava concentrada, com o olhar focado no lobisomem.
— Saia daí! — gritou ela para Kevin.
Ele obedeceu e saiu do caminho. Uma
flecha cravou-se no peito direito da fera, que recuou ainda mais. Aquilo não
fazia sentido, Kevin pensou. Como simples
flechas podem fazer tanto mal a ele? Sophie leu o assombro no rosto do
irmão, e falou:
— As pontas são de ametista. Uma velha
me vendeu dizendo que poderiam ser úteis se eu quisesse matar um monstro.
Parece que ela não estava mentindo. Agora pegue a sua espada!
Assim que ela terminou de falar,
lançou mais uma flecha contra Garvan. A seta acertou em seu ombro esquerdo.
Kevin caminhou cambaleando até a espada e empunhou-a. Encontrou sua mãe
encostada na parede, observando a cena com os olhos arregalados. Ela não
aparentava estar ferida, para alívio de Kevin.
Ele postou-se ao lado de Sophie, que
já tinha outra flecha preparada e apontada. Garvan os olhava furioso do outro
lado da sala. Seu rosto estava desfigurado numa careta de dor e ódio, e espuma
saia de sua boca. A janela abria-se atrás dele, emoldurando-o. Uma silhueta
negra em contraste com o céu nublado.
— Vocês acham mesmo que vão conseguir
me matar com essas flechas? — sua voz soava como um rosnado.
— Sim — respondeu Sophie, cínica.
Seus dedos soltaram a corda do arco. A
flecha cortou o ar e penetrou o peito de Garvan. Ela transpassou pele e
músculo, até atingir o coração. A besta urrou de dor e cambaleou para trás, em
direção à janela. A menos de um metro da queda mortal, Garvan parou e caiu de
joelhos. As mãos agarrando a flecha que estava cravada em seu coração. Apesar
de todo o esforço que fez para arranca-la, ela não se moveu. Kevin caminhou até
ele; a espada arrastando no chão. Um som estridente de metal sobre pedra
ecoando nas paredes. O lobisomem ergueu os olhos e ficou observando Kevin para
ali, na sua frente.
— Não me mate, eu suplico. Eu...
— Você fala demais.
Kevin ergueu a espada com as duas mãos
e enfiou-a com toda a força na testa de Garvan. A ponta da arma brotou na nuca
do monstro, ensanguentada. Kevin puxou a lâmina de volta e chutou o peito da
fera, que tombou para trás e caiu da janela, mergulhando em direção ao chão. Mergulhando
em seu próprio abismo. Não havia nenhum lugar onde Kevin pudesse limpar sua
espada, então ele enfiou-a na bainha ainda ensanguentada, e deu as costas para
a janela.
As histórias diferem sobre o que
aconteceu depois disso. Algumas dizem que os três acharam um portal mágico na
moldura do espelho quebrado, e por lá fugiram, outras que eles tentaram escapar
pelos esgotos e passaram sete anos perdidos dentro deles. Existem até aquelas
que afirmam que Kevin tornou-se rei no lugar de Garvan, dando origem a uma
linhagem de monarcas justos e corajosos. Bem, deixemos todas as suposições e
teorias de lado, pois a única coisa que precisamos saber é que eles viveram, e
que foram felizes sempre que possível.
FIM