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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“EU ERREI” E OUTRAS COISAS QUE NUNCA DISSE ANTES

“Tudo que sei é que nada sei”. Essas palavras nunca fizeram tanto sentido quanto agora.
            Sempre me juguei uma pessoa esperta, intuitiva, que conseguia decifrar a personalidade de alguém sem precisar fazer muito esforço. Como eu estava enganado. As experiências pelas quais passei nas últimas semanas me provaram quão falhas são as conclusões que formamos de nós mesmos. Não me conheço e não conheço ninguém.
        Julguei pessoas sem nem ao menos conhecê-las; pensei o pior sobre tudo e sobre todos; fui preconceituoso, arrogante, dissimulado, perverso. Até aí não tem nada de novo; sempre fui assim, e sempre convivi muito bem com esses “defeitozinhos”. Por mais terrível que eu fosse, o tempo sempre (repito, sempre) mostrava que eu estava certo em meus julgamentos. As pessoas nunca se mostravam melhores do que suas caricaturas bizarras, que eu criava em minha cabeça. Mas alguma coisa mudou. Eu errei.
                Era manhã, e o sol fervia do lado de fora do prédio. Eu andava sozinho por corredores que não conhecia. Passava por portas novas e velhas, grandes e pequenas. Mas não era nos corredores que eu prestava atenção, muito menos nas portas, e sim no futuro. Não o futuro das décadas e séculos, mas o futuro dos minutos, segundos e milésimos de segundos. O futuro depois de cada passo, aquele futuro que pisa em nossa sombra e que, a pouco, chamávamos de “agora”. Esse futuro me assustava, e me roubava o ar dos pulmões. Sentia-o afiando as garras, preparando-se para me estraçalhar. É estranho dizer isso, mas, naquele momento, senti uma forte ligação com a Maria Antonieta. Acho que tem alguma coisa a ver com guilhotinas, sei lá...




                Onde eu quero chegar é, “cheguei”. As pessoas que eu menos queria ver no mundo estavam lá, enfileiradas de ambos os lados do corredor. Parei, respirei fundo, e segui em frente. Eu não sentia meus pés tocando o chão, nem as pernas me carregando. Meu corpo sumiu, e tudo que restou dele foi um coração que batia descontrolado, querendo fugir daqueles olhares curiosos. Passei entre “os estranhos”, desejando com toda a força que todos eles morressem. Encostei-me na parede, olhei para o chão, e para o chão continuei olhando por um tempo indeterminado (sem tirar da cabeça o desejo de que alguma catástrofe acabace com a vida de todos os presentes).
                É neste momento em que separamos as histórias boas das ruins. Nas histórias ruins, você acaba adivinhando o final; nas boas, tem a tal da “reviravolta”, o imprevisível. Posso dizer que minha história acabou virando uma “boa história”, contrariando todas as minhas expectativas. Na minha cabeça, eu já havia escrito e reescrito esta narrativa diversas vezes, e o final era sempre o mesmo: eu sozinho num canto da sala, calado, solitário, desejando que o dia acabasse logo para que eu pudesse ir para casa, mas no dia seguinte eu voltaria, e começaria tudo de novo... mas como eu disse, esta é uma boa história, e nas boas histórias não conseguimos adivinhar o final.
Tudo o que eu posso (e consigo) dizer é que não fui ignorado. Alguém se aproximou de mim, e me estendeu a mão. Esta pessoa não sabe, mas livrou-me de uma solidão que já estava etiquetada com meu nome. Ela me abriu os olhos, e só então eu pude olhar em volta e perceber que não estou sozinho, que as pessoas também têm bondade dentro de si e que o tempo não é tão assustador quanto eu pensava. Ainda quero que algumas pessoas morram, mas agora já posso dizer que meu “ódio infundado” não é tão infundado assim.
Você não sabe o quão difícil foi escrever este texto, pois admitir meus erros é uma verdadeira tortura, mas eu precisava colocar isso pra fora, e, acima de tudo, agradecer, e agora falo diretamente à pessoa que me ajudou: você provavelmente nunca vai ler este texto, sequer vai tomar conhecimento dos meus sentimentos, mas, mesmo assim, quero lhe agradecer. Você pode não saber, mas seu gesto me impediu de mergulhar numa “história ruim”. Obrigado.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O MENINO QUE NÃO SABIA CHORAR




                    Anônimo nasceu numa tarde nublada de Junho. Depois de muitas horas de trabalho de parto, Anônimo veio ao mundo, mas, ao contrário dos bebês normais, ele não chorou. Hoje se sabe que Anônimo não era um bebê normal. Nunca foi. Não importava se era dia ou noite, se estava quente ou frio, se tinha fome ou outras dessas coisas de bebês, ele nunca chorava. A mãe dele, Sra. Alguém, as vezes ia ao seu quarto de madrugada, e encontrava-o acordado, olhando fixo para o teto, como se estivesse dormindo de olhos abertos.
                    Ele também demorou mais para aprender a falar do que as outras crianças. Sua primeira palavra foi “não”. Mesmo depois de começar a falar, ele não se comunicava muito. Não falava nada além do necessário. Anônimo cresceu solitário, sem amigos. Ele simplesmente não entendia as outras crianças. Por que elas corriam e gritavam tanto? Por que arreganhavam a boca e mostravam os dentes para mostrar que estavam felizes? Nada fazia sentido para Anônimo.
                    Ele, quando pequeno, gostava de desenhar árvores e relógios. Cresceu, e trocou os lápis de cor por bonecos dos Power Rangers. Com o tempo, também abandonou os brinquedos, substituindo-os por livros. Anônimo gostava de ler. Ele sentia como se estivesse vivendo uma vida que não era a sua. Uma vida de pessoas que sentem e choram. Mas ele não gostava dos finais dos livros, pois as vidas que ele vivia deixavam de existir, obrigando-o a voltar para a realidade, onde ele nada sentia. Anônimo achava que a morte devia ser parecida com o final de um livro.
                    Anônimo sabia que não era normal, e seus pais também. Mandaram-no para diversos psicólogos e psiquiatras, mas nada mudou. Terapias, hipnose, medicamentos; nada fazia efeito. Ele não sentia absolutamente nada, como se fosse um objeto inanimado, como se não existisse. Nem os gritos que a mãe dava quando apanhava do Sr. Alguém o emocionavam. Ele trancava-se no quarto e tentava chorar, ficar triste, qualquer coisa, mas não conseguia. Uma vez ou outra ele sentia que era uma pessoa ruim por não se importar com os outros. Não era culpa; estava mais para uma nota de rodapé sobre sua própria vida. Assim que os gritos acabavam, esses pensamentos iam embora, e ele voltava para os livros.
                    Um dia Anônimo encontrou um cachorro morto na rua. Ele observou-o rapidamente, reparando nas marcas de pneu no corpo do animal, depois virou as costas e foi para casa. Não foi muito diferente quando ele recebeu a notícia da morte do pai. Observou-o rapidamente estirado no caixão, com os algodões enfiados no nariz, depois virou as costas e foi para casa. Não é preciso dizer que ele não derramou uma lágrima, não é? A Sra. Alguém tentou se matar, tomando todos os remédios que encontrou pela casa. Não conseguiu. Uma vizinha encontrou-a desmaiada e socorreu-a. Anônimo visitou a mãe algumas vezes no hospital, mas não prestou atenção nas palavras dela. Tudo o que ele queria era sair daquele lugar e trancar-se em seu quarto.
                    Um dia, já de madrugada, ele terminou de ler mais um de seus livros. As Aventuras de Pinóquio. Ao contrário das outras vezes, não foi tomado pela sensação de vazio que sucedia os finais dos livros. Alguma coisa naquela história havia despertado algo novo dentro dele. Algo humano. Naquela noite, ele sonhou com a fada azul, e chorou enquanto dormia. No outro dia, ele não se lembrava mais do sonho, e as lágrimas em seu rosto já haviam secado. Anônimo se lembrou do cachorro atropelado que encontrou outro dia, e sentiu-se triste. Ele sentiu algo pela primeira vez na vida, como um menino de verdade.

domingo, 25 de novembro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 5


SOB O CAPUZ

Chão úmido. Cheiro de urina. Escuridão. Kevin tentava se acomodar da melhor maneira possível encostado à parede da masmorra. O silêncio seria absoluto, não fosse pelo som de sua respiração e um zunido incessante em seus ouvidos. Ele ainda estava confuso, mas já conseguia por os pensamentos em ordem. Tudo foi rápido demais, estranho demais.
Num momento eles caminhavam furtivamente pelo castelo, no outro eram mandados para as masmorras pela mulher que achavam ser mãe deles. Ela não titubeou, não demonstrou o menor sinal de ressentimento, apenas disse: “Joguem eles nas masmorras. O rei irá querer interroga-los quando voltar.”
Será que eu me enganei? Pensou Kevin, pela centésima vez. Não, não posso ter me enganado. Sophie também achou o mesmo que eu. Eu vi nos olhos dela... ou será que eu imaginei isso? Mas, se eu não estiver enganado, se a rainha for mesmo a minha mãe, por que ela jogaria os próprios filhos na masmorra? Rainha? Como assim “rainha”? Como isso aconteceu? Será que ela é a esposa do rei? Claro que ela é a esposa do rei, seu imbecil! Mas... o que aquele monstro fez...
Um som distante interrompeu os questionamentos de Kevin. Um som metálico, uma tranca talvez... e chaves. Agora se ouviam passos, e de mais de uma pessoa, ao que parecia. Eles ficavam cada vez mais próximos. Outra tranca. O ranger de uma porta. Os passos já estavam quase na porta da cela de Kevin. Eles vieram me interrogar. Acabaram de torturar minha irmã, e agora vão me torturar. Ele teve vontade de chorar, de gritar. Gritar pelo nome da irmã, como fez no palácio da bruxa, mas, como da outra vez, não obteria resposta.
Os passos pararam. O barulho de chaves foi seguido pelo da tranca. A porta da cela se abriu com um rangido alto. Uma sombra encapuzada estava parada do outro lado do portal, observando-o. Mesmo tentando, Kevin não conseguiu se levantar, pois seus músculos estavam tensos e doloridos. A sombra caminhou até ele vagarosamente, e parou.
— Kevin, sou eu — disse Sophie, baixando o capuz.
Ele deu um salto, ignorando toda a dor que aquilo lhe causou. Correu até a irmã, e segurou o rosto dela entre suas mãos trêmulas, como que para ter certeza de que não era um sonho — ou um pesadelo. Kevin ria e chorava ao mesmo tempo. Ele nunca havia ficado tão feliz de ver Sophie.
— Como você conseguiu fugir? Você... Você está bem? — Kevin perguntou com a voz embargada.
— Está tudo bem. Ela me ajudou.
Foi só aí que Kevin reparou em outra pessoa encapuzada, que aguardava silenciosa na entrada da cela. Ele sentiu seu coração queimar e se expandir. Mesmo sem poder ver o rosto de sua misteriosa salvadora, sorriu... sorriu como não sorria a cinco anos. Existia vida no mundo outra vez. Eu estava certo.
A mulher misteriosa jogou o capuz para trás e ficou olhando-o, admirando-o. Ela lhe abriu os braços, e Kevin jogou-se entre eles.
— Filho.
— Mãe.
Kevin sentia-se mais leve, quase a ponto de erguer-se do chão e voar até o céu. Toda a dor e incerteza que ele carregara nos últimos anos pereceram evaporar, e delas não restara nada além de lembranças distantes, como a sombra de sua história. Ele não queria se soltar daquele abraço; não queria descer dos céus. Nada mais importava, pois a vida voltou a ser bela.
— Eu tive medo... tive medo de não te ver mais... medo de que você estivesse... — Kevin não sabia mais como pronunciar aquela palavra.
— Está tudo bem agora. Eu estou aqui. Estamos juntos novamente.
Kevin soltou-a e olhou em seus olhos. Eram os mesmos olhos verdes dos quais ele se lembrava, mas o resto estava diferente. Ela estava mais “exuberante”. Os questionamentos assaltaram Kevin todos de uma vez. Um mar de dúvidas.
— O que aconteceu com você? Por que... você virou rainha?
A felicidade deu lugar ao pesar na face de Anne — este era o nome verdadeiro dela. Ela olhou para o chão, e, só depois de muito tempo, falou:
— É uma longa história. Não temos todo esse tempo. O que você precisa saber é que não tive escolha. O rei se apaixonou por mim e me forçou a se casar com ele. Tive que abandonar minha história e esquecer quem eu era. Fui obrigada a ver e fazer coisas horríveis, mas, mesmo assim, nunca deixei de pensar em vocês, nem um dia sequer. A esperança de reencontra-los um dia foi a única coisa que me impediu de fazer uma loucura — ela falou isso com uma frieza impressionante. Os anos que ela havia passado naquele castelo haviam-na transformado numa mulher forte. — Não pude fazer nada quando vocês entraram na sala do trono. Se eu tivesse tentado algo, os soldados nos matariam. Agora vamos sair daqui antes que alguém perceba que eu não estou no meu quarto, e que a cela da sua irmã está vazia. Tome, isto é seu — ela entregou a Kevin a espada e o punhal dele. — Consegui pegar antes de fugir.
Anne caminhou com passadas largas para a porta, mas antes de poder se distanciar muito, Kevin falou:
— Mãe?
— Sim?
— Não vou te perder de novo.
Ela parou, virou-se, e sorriu. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Você é igual ao seu pai. Os dois são — ela disse, agarrando Sophie pela mão. — Vamos.
Enquanto eles corriam pelos corredores subterrâneos do castelo, Kevin perguntava-se se conseguiriam de fato fugir. Havia guardas espalhados por todos os lados, e não demoraria muito até que começassem a caça-los. Tinham que sair do castelo, cruzar a cidade e passar pelas muralhas, tudo isso antes que soasse o alarme. Parecia impossível.
— Onde está o rei? — ele perguntou.
— Garvan foi cuidar de revoltosos perto do Mar de Outono. Não deve voltar até a próxima lua cheia — respondeu Anne.
— É verdade que ele é um... monstro? — Sophie perguntou, ao mesmo tempo temerosa e encantada.
— Não que eu saiba, mas ele com certeza não é um homem comum.
Os túneis pareciam não ter fim. Cada segundo ali embaixo parecia um minuto, e cada minuto, uma eternidade. Nada dava sinal da passagem do tempo. O mundo resumia-se a escuridão e ecos. As chamas do archote que Anne carregava tremulavam, enchendo o espaço ao redor deles de sombras, companheiras observadoras e silenciosas. No fim de um corredor especialmente longo, deram de cara com uma porta de ferro. Anne pegou as chaves e destrancou-a rapidamente. O rangido que ela fez ao se abrir seria suficiente para acordar todos os mortos das redondezas. Agora Kevin tinha certeza de que seriam descobertos, e logo. Passaram por outras tantas portas, de madeira e de ferro; subiram escadas; cruzaram corredores e mais corredores, até que, por fim, entraram numa sala de pedras rústicas, com lustres velhos pendurados no teto e janelas altas guarnecidas por grades. Existia uma única mesinha na sala, colocada num dos cantos do cômodo. Havia sangue sobre e em volta do móvel, e um par de pés calçados com botas projetava-se de detrás dele. Kevin olhou para a mãe, procurando uma explicação, mas ela ignorou-o.
Saíram pela outra porta que havia na sala, e prosseguiram com sua fuga. Anne guiou-os através do castelo até uma torre na ala leste. Para evitar encontrar guardas e criados, tiveram que pegar um caminho mais longo, cruzando corredores empoeirados e quase abandonados. Subiram até o último cômodo da torre, onde não havia nenhum móvel além de um espelho trincado e manchado. Uma enorme janela em forma de arco abria-se para o mundo exterior. Ela estendia-se do chão ao teto, como uma porta abrindo-se para o céu. Uma porta, não uma janela. Kevin não conseguia entender porque sua mãe havia os levado até aquele lugar. Por mais que perguntasse o motivo daquilo, ela se negava a responder.
— O que estamos fazendo aqui? — ele perguntou novamente, depois da mãe trancar a porta atrás deles.
— Esta torre é chamada de Torre de Eva. Dizem que aqui existe uma passagem secreta que leva para fora do castelo. Procurem pelas paredes, eu vou...
— Como assim dizem? A senhora não tem certeza? — perguntou Sophie, aturdida.
— Essa é nossa única chance. Colocaram mais guardas na muralha depois do que vocês fizeram, e se tentássemos fugir pelos esgotos, talvez nunca mais conseguíssemos sair de lá. Não temos escolha.
Sophie e Kevin ficaram tateando as paredes, empurrando cada pedra que alcançavam, enquanto Anne movia com dificuldade o pesado espelho. Não havia nada atrás dele. Ela juntou-se aos filhos no enxame às pedras, mas, mesmo assim, não obtiveram nenhum resultado. Eles já haviam desistido das paredes, e começavam a tatear o chão, quando um ruído indistinto chamou-lhes a atenção. Os três ergueram a cabeça e apuraram os ouvidos, e só depois de algum tempo reconheceram ser um assovio.
— Deve ser só um pássaro lá fora — Kevin deu de ombros.
O som não cessou, e ficou cada vez mais próximo.
— Não, não é um pássaro — disse Anne, levantando-se rapidamente. — Esse som vem daqui de dentro da torre.
Kevin e Sophie mal tiveram tempo de se levantar e pegar suas armas, pois a porta espatifou-se por inteira, sem o menor aviso prévio. Lascas de madeira voaram em todas as direções, como um enxame de abelhas, obrigando-os a proteger os olhos. Quando voltaram a olhar para a entrada do cômodo, encontraram um homem parado onde antes ficava a porta, observando-os e assoviando.
— Encontrei vocês — o homem disse, com uma voz ao mesmo tempo dura e comedida.
Ele tinha pelo menos uns dois metros de altura, e um corpo muito musculoso. Volumosos cabelos negros emolduravam um rosto anguloso, de onde dois grandes olhos cor de mel examinavam os presentes. Ele parecia estar achando graça em tudo aquilo, pois um tímido sorriso estampava-se eu seu rosto.
— Garvan, o que você está fazendo aqui? — Anne soou impressionantemente decidida ao dizer essas palavras.
Você? Onde está o “Vossa Majestade”?
— Dane-se a majestade.
— Oh! Parece que alguém aqui se esqueceu dos modos, e também se esqueceu de me apresentar nossos convidados — disse Garvan, olhando para Sophie e o irmão.
Anne ficou calada, encarando o rei. Kevin estava impressionado com a força e a coragem da mãe. Ela, assim como os filhos, havia mudado muito nos últimos anos.
— É um grande prazer conhecer os filhos de minha esposa, e...
— Deixe-os ir. Fique comigo. Eles não têm nenhuma serventia para você. Deixe-os ir — Anne suplicou; sua voz já não soava tão dura assim.
— Nenhum de vocês sairá daqui... vivo.
Garvan saltou para frente, indo na direção de Anne. Sophie tentou atingi-lo com seu punhal, mas ele foi mais rápido e deu um soco nela, jogando-a contra a parede. Isso aconteceu numa fração de segundo, e antes que Anne pudesse reagir, Garvan já apertava sua garganta e erguia-a do chão. Ela lutava inutilmente contra a descomunal mão que envolvia seu pescoço.
— SOLTA A MINHA MÃE! — Kevin partiu para cima dele empunhando a espada com as duas mãos, e conseguiu abrir um corte profundo no braço com o qual Garvan segurava Anne. Ele largou-a imediatamente.
O rei olhou indiferente para o corte no braço, do qual não parava de jorrar sangue. Contemplou-o durante um tempo, e depois, com a mesma frieza, virou-se para Kevin e disse:
— Você ainda não entendeu que vai morrer, não é?
Um súbito tremor atacou o corpo de Garvan, mas ele sorria. Um sorriso sádico e cruel, e feroz, e mortal. Suas pernas curvaram-se num ângulo estranho, e seus pés transformaram-se em patas. De suas mãos brotaram garras, e pelos negros começaram a cobrir todo o seu corpo, corpo esse que ficou ainda mais musculoso. Seu rosto esticou e afinou-se, dando lugar a um focinho. Suas orelhas cresceram, junto com os dentes, mas os olhos continuaram os mesmos. A besta ficou parada, arfando, olhando para tudo e nada ao mesmo tempo, até que direcionou sua atenção para Kevin.
— Onde nós paramos? — sua voz era rouca e cheia de ecos. — Ah sim! Na parte em que eu te explico que você vai morrer.
O lobisomem — ou o que quer que ele fosse — atirou-se sobre Kevin com a boca arreganhada e os dentes a mostra. Kevin girou a espada no ar, mas não conseguiu atingir a fera, só retarda-la. Furioso, Garvan investiu novamente, agarrando a frente das vestes de Kevin e jogando-o contra a parede. Ele tentou fugir rastejando, mas foi lento demais; a besta segurou uma de suas pernas e atirou-o do outro lado do cômodo. Kevin chocou-se contra o espelho, fazendo uma chuva de cacos de vidro cair sobre si. Seu corpo estava muito ferido, mas ele não sentia dor, apenas um desejo irracional de salvar a si e a família. Ele tateou em volta, mas não encontrou a espada, e o punhal também havia sumido. Tudo o que achou foi uma infinidade de cacos de vidro. A lembrança da bruxa veio e foi embora num lampejo, mas foi o suficiente para deixa-lo sem ar nos pulmões. As vidas da mãe e da irmã dependiam dele, mas não havia nada que pudesse fazer para salvá-las. Por um momento, desejou ter sido queimado junto com o pai na aldeia, cinco anos atrás.
Ele arrastou-se debilmente sobre o vidro espatifado, procurando pela espada. O chão vibrava com os passos de Garvan. Kevin podia sentir a fera se aproximando; os olhos postos nele, prestes a atacar. Ele enxergou a arma, mas ela estava muito distante; antes que conseguisse alcançar, seu corpo já repousaria destroçado sobre o chão de pedra fria. Um incrível sentimento de aceitação assaltou-o, e ele reconheceu que aquilo era o fim. Mãe. Sophie. Seu coração doía por saber que elas não teriam um destino diferente do seu, mas pelo menos estavam todos juntos novamente. E pela última vez. Acabou, ele pensou.
Um grito — um urro — de gelar a espinha ecoou pelo cômodo. Aquilo, definitivamente, não era humano. Foi o som mais próximo de um trovão que Kevin já havia escutado. Ele rolou para cima e deparou-se com Garvan em pé, sobre ele. Seu corpo estava arqueado e ele respirava pesadamente. Suas mãos tremiam descontroladas, e uma flecha estava cravada no seu ombro direito. Antes que a fera se recuperasse do ataque, outra flecha atingiu-o, enterrando-se no seu abdômen, forçando-o a dar alguns passos para trás. Kevin levantou-se com dificuldade e olhou em volta. Sua irmã estava em pé próxima à porta, terminando de enfiar uma flecha em seu arco e apontando para Garvan. Sangue saia de um corte em sua testa, manchando metade do seu rosto, mas ela estava concentrada, com o olhar focado no lobisomem.
— Saia daí! — gritou ela para Kevin.
Ele obedeceu e saiu do caminho. Uma flecha cravou-se no peito direito da fera, que recuou ainda mais. Aquilo não fazia sentido, Kevin pensou. Como simples flechas podem fazer tanto mal a ele? Sophie leu o assombro no rosto do irmão, e falou:
— As pontas são de ametista. Uma velha me vendeu dizendo que poderiam ser úteis se eu quisesse matar um monstro. Parece que ela não estava mentindo. Agora pegue a sua espada!
Assim que ela terminou de falar, lançou mais uma flecha contra Garvan. A seta acertou em seu ombro esquerdo. Kevin caminhou cambaleando até a espada e empunhou-a. Encontrou sua mãe encostada na parede, observando a cena com os olhos arregalados. Ela não aparentava estar ferida, para alívio de Kevin.
Ele postou-se ao lado de Sophie, que já tinha outra flecha preparada e apontada. Garvan os olhava furioso do outro lado da sala. Seu rosto estava desfigurado numa careta de dor e ódio, e espuma saia de sua boca. A janela abria-se atrás dele, emoldurando-o. Uma silhueta negra em contraste com o céu nublado.
— Vocês acham mesmo que vão conseguir me matar com essas flechas? — sua voz soava como um rosnado.
— Sim — respondeu Sophie, cínica.
Seus dedos soltaram a corda do arco. A flecha cortou o ar e penetrou o peito de Garvan. Ela transpassou pele e músculo, até atingir o coração. A besta urrou de dor e cambaleou para trás, em direção à janela. A menos de um metro da queda mortal, Garvan parou e caiu de joelhos. As mãos agarrando a flecha que estava cravada em seu coração. Apesar de todo o esforço que fez para arranca-la, ela não se moveu. Kevin caminhou até ele; a espada arrastando no chão. Um som estridente de metal sobre pedra ecoando nas paredes. O lobisomem ergueu os olhos e ficou observando Kevin para ali, na sua frente.
— Não me mate, eu suplico. Eu...
— Você fala demais.
Kevin ergueu a espada com as duas mãos e enfiou-a com toda a força na testa de Garvan. A ponta da arma brotou na nuca do monstro, ensanguentada. Kevin puxou a lâmina de volta e chutou o peito da fera, que tombou para trás e caiu da janela, mergulhando em direção ao chão. Mergulhando em seu próprio abismo. Não havia nenhum lugar onde Kevin pudesse limpar sua espada, então ele enfiou-a na bainha ainda ensanguentada, e deu as costas para a janela.
As histórias diferem sobre o que aconteceu depois disso. Algumas dizem que os três acharam um portal mágico na moldura do espelho quebrado, e por lá fugiram, outras que eles tentaram escapar pelos esgotos e passaram sete anos perdidos dentro deles. Existem até aquelas que afirmam que Kevin tornou-se rei no lugar de Garvan, dando origem a uma linhagem de monarcas justos e corajosos. Bem, deixemos todas as suposições e teorias de lado, pois a única coisa que precisamos saber é que eles viveram, e que foram felizes sempre que possível.



FIM


terça-feira, 20 de novembro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 4

Atendendo a pedidos, aqui está a continuação de Doce escuridão.
                Peço desculpas por demorar tanto para postá-la, mas uma mistura de garganta inflamada e bloqueio criativo me impossibilitaram de escrever. Mas o que importa é que acabei, e aqui está o fim... na verdade não é exatamente o fim, pois terei que dividir a continuação em duas partes.                Sem mais rodeios, aqui prossegue a história de Kevin e Sophie, mas serão eles os mesmos que conhecemos?                
Boa leitura.


 LONGE, MUITO LONGE

Era uma vez, numa aldeia esquecida pelo resto do mundo, um casal de irmãos. Seus nomes eram Kevin e Sophie. Eles viviam felizes com seus pais e com toda a gente daquele lugar, até que, certo dia, uma desgraça se abateu sabre eles.
Uma horda de bárbaros invadiu o povoado na calada da noite. Saquearam e queimaram as casas, estupraram as mulheres e mataram todos aqueles que se atreveram a lutar, inclusive o pai de Kevin e Sophie. Da mãe deles não se sabia o paradeiro. Ela havia sido arrastada pelos invasores para fora de casa, aos gritos. Os irmãos conseguiram fugir esgueirando-se pelos fundos da casa e correndo pela estrada, encobertos pelo manto de escuridão de uma noite sem luar. Caminharam durante dias e mais dias, e, numa noite, quando haviam se convencido que já estevam relativamente seguros, depararam-se com o acampamento dos saqueadores montado na floresta. Eles fugiram desembestados, como se a própria morte estivesse caçando-os, esticando suas frias mãos para arrasta-los para o vazio. Nesta desesperada fuga, foram parar numa floresta assombrada, onde as árvores tinham vida e fome. Mesmo lutando com todas as suas forças contra os galhos e raízes, eles acabaram sendo subjugados. Quando tudo parecia estar perdido, uma mulher misteriosa apareceu e livrou-os do abraço da morte, mas não por muito tempo. A estranha que os salvou na verdade era uma bruxa com sede de sangue. Ela sequestrou Sophie e tentou sugar a vida da pobre garota, mas Kevin chegou a tempo de impedir os planos da bruxa de se concretizarem. Ele arrancou a cabeça dela com um machado, e conseguiu salvar a irmã, mas a jornada deles não acabava aí... Eles deviam encontrar sua mãe, e, caso ela ainda estivesse viva, libertá-la de seu cativeiro, não importa o quão difícil isso fosse.
A estrada era sombria, e por mais terríveis que fossem os demônios que eles encontrariam no caminho, o pior ainda estava por vir.

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— Chegou a hora — disse Kevin, deitado de bruços na terra e olhando para o horizonte.
Sophie levantou-se e foi para junto do irmão, acompanhando-o em sua vigia. O dia estava nublado, e tudo parecia estar coberto por uma fina película de cinzas. Kevin não deu atenção para a irmã quando ela sentou-se do seu lado. Seus olhos continuaram voltados para longe, muito longe...
— Você tem certeza? Não podemos esperar mais um pouco? Quem sabe...
— Não, não podemos mais esperar — cortou o irmão. — Há cinco anos nós procuramos por ela, e agora que finalmente temos alguma chance de encontra-la, você quer “esperar mais um pouco”?
— Eu não... não foi isso... Me desculpe. Você está certo. Quando iremos então? Vamos esperar anoitecer, ou...
— Agora.
Sophie não falou mais nada, apenas lançou um último olhar para o castelo que estavam espionando. Uma ilha negra num mar sem vida. Aquelas altas torres pareciam mãos com garras afiadas, tentando arrancar os próprios deuses do céu e joga-los na terra. Há cinco anos eles procuravam a mãe. Andaram por terras estranhas e sombrias; depararam-se mais de uma vez com a crueldade dos bárbaros, e seguiram seu rastro de destruição, mas nunca haviam conseguido nenhuma pista do paradeiro da mãe... até agora.  Ao que parecia, todos os prisioneiros eram levados para aquele castelo, depois se decidia o que seria feito deles. Com certeza haveria alguma pista, alguma resposta, entre aquelas paredes, e eles precisavam entrar lá. Era muito arriscado, eles sabiam; mas agora que haviam chegado tão longe, não podiam desistir.
O tempo transformou-os. Os desafios e perigos que encontraram no caminho os obrigaram a crescer mais rápido que os demais, e a trilharem sozinhos seus próprios caminhos. As mãos de ambos já estavam sujas de sangue. Não havia mais inocência neles, apenas uma alma cavernosa e cheia de ecos.
Desceram juntos do morro de onde estavam espionando, e caminharam em direção aos portões da muralha. No meio do caminho Sophie pegou um pouco de lama e espalhou pelo corpo, e Kevin amarrou as mãos dela e arrastou-a assim pelo resto do trajeto. Chegando perto do castelo, ele levantou o capuz e baixou a cabeça, mascarando-se com sombras. Dois vigias guardavam um portão secundário, para o qual eles se dirigiram. Quando Kevin se aproximou, os guardas cruzaram suas lanças, impedindo que os irmãos passassem. O da direita perguntou:
— O que vocês querem aqui?
— Encontrei essa vadia escondendo-se na floresta perto de Caimar, e vou vendê-la como escrava — respondeu Kevin, sem levantar o rosto. Ele e a irmã já haviam causado problemas suficientes para os bárbaros, e se fossem reconhecidos, tudo estaria perdido.
O guarda da esquerda aproximou-se de Sophie. Ele era mais alto que seu companheiro, e seus braços eram tão grossos quanto troncos. Sua espada balançando pesadamente, presa em seu cinto. Ele parou na frente de Sophie, agarrou a bunda dela com sua grande mão e puxou-a para si. Ela não tentou resistir.
— Há muito tempo não como uma boa puta. O que você acha se ficarmos com ela, Isy? — gritou ele para o outro guarda.
— Ela é minha prisioneira — disse Kevin, calmamente.
O vigia que estava junto dele ficou encarando-o, ou encarando o capuz, pelo menos. A cada segundo que passava, Kevin ficava mais apreensivo, mas procurou esconder isso. Por fim, o guarda falou:
— Podem passar.
Sophie e o irmão relaxaram neste momento, e passaram pela muralha, mas, depois de terem dado alguns poucos passos, uma voz chegou até seus ouvidos:
— Esperem.
Os dois pararam no mesmo momento. Ouviram passos aproximando-se deles.
— Abaixe o capuz — disse um dos guardas para Kevin.
Ele virou-se para o homem, mas não o obedeceu.
— Abaixe o capuz agora.
A esta altura o segundo guarda já se juntava ao seu colega, mas Kevin não obedeceu. Foi só quando os dois guardas já estavam próximos dele, e pareciam estar a ponto de arrancar-lhe o capuz a força, que ele o abaixou, e encarou-os. Os vigias olharam-no sem grande interesse, até que aquele chamado Isy franziu o cenho, apertou os olhos, e disse:
— Eu conheço você.
— Não, não conhece — disse Kevin com toda a calma do mundo. Antes que o homem pudesse dar mais uma palavra, Kevin puxou o punhal da cintura e cortou a garganta dele, fazendo jorrar uma cascata de sangue pelo pescoço e peito do vigia. O segundo guarda nem teve tempo de reagir, pois Sophie já havia se soltado das cordas e caído sobre ele. Agora ambos estavam jogados, com as gargantas cortadas, numa poça de sangue que crescia cada vez mais. Suas espadas permaneciam nas bainhas.
— Vamos nos livrar dos corpos e sair daqui antes que alguém dê o alarme de invasores — disse Kevin à irmã, limpando o punhal no manto do guarda mais alto. Eles esconderam os cadáveres dentro de uma carroça que estava próxima ao portão, e foram em direção ao castelo.
As ruas estavam desertas, pois ainda era muito cedo e o sol mal havia acabado de nascer. As janelas das casas ainda estavam fechadas, mas já era possível ouvirem-se sons dentro delas. Esgueiraram-se por becos e vielas, procurando fugir dos guardas que rondavam a cidade. Quando passaram por uma fonte, Sophie limpou a lama seca que cobria seu rosto, e continuaram a andar. Encontraram algumas caixas cheias de garrafas vazias jogadas numa esquina. Cada um pegou uma. Quando eles chegaram às ruas mais amplas que rodeavam o castelo, uma corneta tocou em algum lugar distante, provavelmente nas muralhas. Não muito depois, três guardas passaram correndo por eles. Um deles parou e perguntou-os:
— Para onde estão indo?
— Estamos levando estas garrafas para a cozinha do castelo — mentiu Sophie.
O homem não se deteve mais, apenas bufou aborrecido e seguiu correndo atrás de seus companheiros. Kevin e a irmã por fim chegaram ao castelo. Entraram numa rua estreita e suja, cercada de altos muros de ambos os lados. Uma grossa porta de madeira destacava-se na parede de pedras ásperas. Não havia guardas vigiando-a. Bom. Abriram-na e entraram no que parecia ser um depósito. Linguiças e grandes pedaços de carne salgada pendiam do teto. As prateleiras estavam cheias de queijos, especiarias e potes de barro. Sacos de trigo e cevada amontoavam-se pelo chão, juntos com caixas e mais caixas de legumes. Eles não largaram as caixas com garrafas. Passaram por uma portinha e saíram numa ampla cozinha. Algumas poucas pessoas trabalhavam amassando e assando pães, ou cortando legumes. Nenhuma delas deu atenção aos intrusos. Largaram as caixas sobre uma mesa e continuaram. Da cozinha foram para um refeitório cheio de bancos e mesas compridas, depois um amplo corredor, e em seguida outra cozinha, que estava vazia. Quando entraram em um corredor de teto alto, cheio de janelas em forma de arco no topo das paredes, ouviram passos na outra extremidade dele. Eles deram meia volta, mas já era tarde demais. Seis ou sete soldados barraram a passagem por onde eles tinham entrado, com espadas e lanças em punho.
— Onde vocês pensam que vão?
Sophie e Kevin viraram-se, e deram de cara com o guarda que haviam encontrado na rua próxima ao castelo. Ele estava acompanhado de três soldados, um deles com as mãos manchadas de sangue.
— Os levem para a rainha — ordenou aos outros. — Ela saberá o que fazer com eles.
Não havia para onde fugir, e nada que pudesse ser feito. Eles haviam fracassado.

●●●

Os guardas arrancaram todas as armas que eles traziam, e arrastaram-nos pelo castelo. A cada corredor e porta que passavam, a esperança diminuía no coração dos dois irmãos. Aquele labirinto de pedras estranhas havia os engolido, assim como engolira muitos antes deles. Fomos devorados, como nossa mãe...
Chegaram por fim a uma descomunal porta de carvalho e ferro em forma de arco. Sentinelas guardavam-na de ambos os lados, mas nem sequer lhes lançaram o mais sutil dos olhares, apenas abriram a porta. Um salão gigantesco desdobrou-se na frente deles. Incontáveis lareiras brotavam das paredes, mas nenhuma delas estava acesa. Toda a luz que iluminava o local era proveniente de altos vitrais que decoravam as paredes; fora isto, não havia mais nenhum adorno. Tudo ali era sombrio e triste, e por mais coloridos que fossem os vitrais, não eram capazes de diminuir a morbidez que brotava dos gestos e olhares dos ali presentes. Não eram muitos; nada além de um punhado de guardas, criados e gente do povo. Dois tronos rústicos estavam do outro lado do salão, vazios.
Os guardas arrastaram Kevin e Sophie para a outra extremidade do salão, para perto dos tronos. Todos os olhares estavam postos neles. As algemas que prendiam os pulsos de Kevin coçavam, mas ele tentou não demonstrar desconforto. Agora, mais do que nunca, ele não podia parecer fraco. Sua única preocupação era a irmã. Ela não era como ele. Sophie ainda preservava um pouco da sua inocência dos tempos de criança, mesmo que carregasse tantas mortes nas costas quanto ele. Para Kevin, ela não passava da sua irmãzinha, que ele precisava proteger a qualquer custo.
Uma trombeta soou solitária em algum lugar do salão, e um arauto gritou:
— Todos saúdem Sua Majestade, a Rainha Eliza, Senhora das Terras Azuis, de Tharnatia e do Mar de Outono.
Todos os presentes silenciaram seus poucos murmúrios e ajoelharam-se.  Um dos guardas que acompanhava Kevin deu-lhe uma cotovelada em suas costelas, e lhe obrigou a ajoelhar-se também. Ele conseguiu ver, pelo canto do olho, a irmã fazendo o mesmo. Passos ecoaram solitários pelo salão. Madeira sobre pedra. Vagarosos.
Toc, toc, toc...
Eles ficavam cada vez mais próximos. Os ecos que eles faziam lembraram a Kevin do palácio da bruxa, e um arrepio lhe subiu pela espinha. Uma sombra passou ao seu lado, mas ele nada enxergou além da barra de uma saia debruada de renda, e sapatos de salto alto decorados com pedrarias.
Toc, toc, toc...
O som parou.
— Levantem-se — disse a rainha.
O coração de Kevin começou a palpitar, mas ele não sabia por quê. Um guarda agarrou seu ombro e puxou-o para cima, bruscamente, então começou a falar:
— Estes aqui invadiram o castelo, Vossa Majestade. Eles assassinaram dois dos nossos guardas e...
Tudo se tornou silêncio.
No momento em que os olhares de Kevin e Sophie cruzaram-se com o da rainha, o mundo deixou de fazer sentido.
Aquele rosto... estava diferente... mas ainda era o mesmo. Sim! Ainda era o mesmo!
A palavra veio à boca de Kevin, e ali ficou, trancada. Sua garganta tornou-se um abismo, e seu coração, e sua alma...
Mãe, sussurrou uma voz do fundo abismo.
Ela está viva... ela é a rainha. Minha mãe é a rainha.
A mulher sentada no trono, mãe e rainha, encarou os dois prisioneiros com total apatia. Seu rosto era uma mascara vazia e inexpressiva. Belo penteado, joias, vestido luxuoso e postura soberana, mas faltava-lhe vida e verdade.

●●●


(continua)


domingo, 11 de novembro de 2012

MAIS DO MESMO




Joguei fora todas as verdades que vesti
E escrevi uma nova história com hidrocor no meu caderno
Enquanto brinco que vamos juntos pro inferno
Fico com a consciência limpa
Sabendo que pra você eu não menti
Quando disse que te quero, sempre quero

Você acha graça quando falo da minha dor
E me chama de depressivo, dramático, sofredor
Mas não me importa se o teu riso
 É a corda com a qual vou me enforcar
Pois, mesmo que se abra o chão, quero é te ver gargalhar

Prometi ao meu editor que iria renovar meu estilo
Mas, das bruxas as fadas, todas se parecem contigo
E idênticas seguem as narrativas entre si
Sempre começo, meio, beijo e fim

Se essas palavras te fizerem algum sentido
Liga me avisando, ou então grita no meu ouvido
Para eu trocar “você” por “nós”
Quem sabe assim eu agrado meu editor, e até os meus avós

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

IMORTAL




Ainda ouvem-se na escuridão os cânticos de vida
E ressoa no chão os passos das estrelas
Nas florestas dançam as donzelas
E mesmo que as tranquem em celas
Ainda perpetuará a batida

Os antigos ainda brotam da terra
Venerando o sol com seus braços-raiz
E onde há gente conta-se que, mesmo na guerra,
Quem os encontra adormecerá feliz

Deita tua espada ao chão, guerreiro
Pois se abriram os portões do teu cativeiro
Limpa o sangue que te cobre
Dispa-se das mortes que te envolvem
E acolha a luz como amiga e amante
Jogando às trevas teu passado errante

Por mais que esbravejem os gigantes
E chova ferro e fogo sobre os filhos da terra
Apesar da dor e tortura da materna ferida
Ainda existirá, no coração da floresta,
Quem lembre os cânticos de vida

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 3




A BRUXA


                Um cheiro doce invadia a narinas de Kevin, e seus olhos estavam pesados e cheios de areia. Ele olhou em volta e percebeu que estava num suntuoso quarto, deitado numa cama de dossel com cortinas azuis. Tentou levantar-se, mas uma fisgada na nuca o forçou a parar. Olhou mais uma vez em volta, procurando pela irmã, mas não encontrou sinal dela no espaçoso cômodo. Um ronco vindo de sua barriga lembrou-lhe que ele não comia havia... há quanto tempo estou deitado aqui? Ele mais uma vez tentou levantar, resistindo com todas as forças às dores que sentia. Caminhou até uma mesinha próxima a cama, onde encontrou pão, queijo, figos e uma jarra de leite. Kevin comeu tudo com tanta pressa que quase colocou tudo para fora, mas, depois de vencer as ânsias de vômito, sentiu-se melhor. As dores no corpo já começavam a diminuir, e o estômago não lhe soava tão feroz.
Uma grande janela em forma de arco subia do chão ao teto, permitindo a entrada dos quentes e aconchegantes raios do sol. Lá fora um vasto jardim estendia-se em todas as direções, com flores de todos os tipos e formatos, e pontilhado aqui e ali por fontes ou árvores frutíferas. Imagens da floresta assombrada voltaram subitamente a sua cabeça, fazendo-o sentir qualquer coisa gelada subir pela espinha. Um temor avassalador tomou seus pensamentos, fazendo-o questionar-se onde estava a irmã e como havia chegado ali. Ele caminhou rapidamente para a porta, abrindo-a de supetão e despontando num largo corredor repleto de tapeçarias. Kevin passou por inúmeras portas, andando cada vez mais rápido e chamando pelo nome da irmã, mas a única resposta era o eco dos seus passos e sussurros distantes que diziam “Sophie, Soph, So...”. Quando ele estava começando a achar que aquele corredor não tinha mais fim, deparou-se com uma escada em caracol que descia para sabe-se lá onde.
                O garoto desceu com passos cautelosos, apurando os ouvidos, mas não se escutava nada. Até os ecos haviam lhe abandonado.  A escada dava num vasto salão que parecia ser inteiramente feito totalmente de ônix e ouro. Kevin ficou totalmente boquiaberto com aquela visão, pois nunca havia visto nada parecido com aquilo. Ele já tinha esquecido totalmente o que estava fazendo, quando o som de risos chegou aos seus ouvidos. O garoto correu pelo salão, cada passo soando como um trovão. Ali também havia inúmeras portas, mas havia uma entreaberta, e ele esgueirou-se por ela. Kevin encontrou a irmã sentada num grande sofá, numa vasta sala arejada, conversando com uma mulher vestida dos pés à cabeça de rosa e púrpura, com cabelos roxos que se amontoavam num rabo de cavalo no topo da sua cabeça, descendo até a cintura. No momento em que Sophie avistou o irmão, saltou sobre ele e abraçou-o forte. As dores ainda incomodavam Kevin, mas ele retribuiu o abraço com todo o calor possível.
                — Pensei que você nunca mais iria acordar — ela disse, soltando o irmão e olhando-o com os olhos cheios de lágrimas.
                — Por quanto tempo eu dormi?
                — Quatro dias — a voz da garota falhou.
                — Não fique assim, já estou melhor agora. Que lugar é esse? — ele perguntou com um sussurro, olhando de relance para a mulher de cabelos roxos, que o olhava com um sorriso e levantava-se do sofá.
                — Este é o palácio de Lady Liana. Foi ela que nos salvou na floresta. Se não fosse por ela...
                — Como a senhora conseguiu espantar as árvores? — Kevin perguntou abruptamente para a mulher que estava em pé ao lado da irmã.
                — Não foram as árvores que atacaram vocês, e sim as aranhas-cantantes. O veneno delas é muito poderoso, e é capaz de causar alucinações.
                — Aranhas? Não foram aranhas que nos atacaram, foram árvores. Eu senti as raízes me prendendo...
                — Tudo não passou de uma alucinação.
                Kevin olhou para a irmã, esperando que ela contasse para a mulher o que havia acontecido, mas Sophie parecia acreditar na história da estranha. Lady Liana percebeu a incredulidade do garoto, e continuou:
                — Encontrei sua irmã gritando e esperneando, e você quase morto. As aranhas tem medo do fogo, por isso fugiram de mim. Você levou muitas picadas, e pensei que não fosse sobreviver, mas, ao que parece, você é um rapaz forte.
                — Picadas? Não me... — foi quando Kevin olhou para o próprio braço e encontrou uma infinidade de pontinhos vermelhos espalhados aos pares sobre ele. O garoto ergueu olhos esbugalhados para a mulher, que retribuiu com um sorriso fraternal. — Obrigado por me salvar Lady Liana... a mim e a minha irmã — agradeceu  o garoto, acanhado.
                — O que importa é que você está bem. Os dois estão bem — disse ela por fim, colocando um braço em volta de uma Sophie alegre e sorridente.
                — Não confio nesta mulher — disse Kevin à irmã quando os dois estavam passeando pelos vastos jardins.
                — Você deveria estar grato. Foi ela que salvou nossas vidas — a garota rebateu, fazendo cara de brava.
                — Eu estou grato, mas não confio nela — ele parou para olhar a estátua de um fauno. Seus olhos eram duros e penetrantes, e Kevin teve a impressão de que a criatura o encarava. Desviando rapidamente o olhar, ele continuou sua caminhada. — Deveríamos ir embora.
                — Você está louco?! — dessa vez foi Sophie que parou de caminhar. — Nós temos tudo o que precisamos aqui, e Lady Liana disse que poderíamos ficar o tempo que quiséssemos.
                — Não podemos ficar aqui Sophie. Precisamos encontrar nossa mãe, ou pelo menos descobrir o que aconteceu com ela.
                A garota olhou para o chão, e assim ficou durante um longo tempo, então falou, com uma voz que se perdia no vento:
                — Você tem razão. Durante o jantar falarei com a Lady, e direi que iremos embora amanhã.
                Mas Sophie nem chegou a jantar. Assim que o sol se pôs, uma súbita febre atacou-a, deixando a garota acamada. Quando Kevin recebeu a notícia, correu para o quarto da irmã, e entrou gritando “O que ela fez com você?!”, mas ela não parecia estar escutando. Sua pele estava pálida, e veias roxas eram visíveis em seu pescoço.
                — Foi o veneno das aranhas. Talvez ele não tenha sido totalmente expurgado do corpo da sua irmã — disse Lady Liana, saindo das sombras calmamente.
                — O que você fez com minha irmã? — perguntou o garoto, exaltado. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELA? DIGA! — a voz dele trovejava, mas Liana continuava indiferente.
                — Você não deveria sair por aí acusando as pessoas sem provas.
                — Você não me engana. Eu sei que aquelas árvores eram verdadeiras, e era você que as controlava! Foi você que colocou aquelas marcas na minha pele, e quando descobriu que nós iriamos embora, deixou minha irmã desse jeito. O que você quer de nós?!
                Lady Liana — ou seja lá quem ela fosse — deu alguns passos para a frente, com os longos cabelos roxos espalhando-se atrás de si. Um sorriso sutil e cruel brotou em seus lábios. Kevin sentiu o chão sumir sob seus pés enquanto a bruxa andava em sua direção, e mais uma vez os sussurros da floresta assombrada soaram em seus ouvidos. Um cheiro doce e inebriante emanava dela.
                — A vida é muito preciosa para ser desperdiçada com criaturas como vocês.
                Kevin não se lembrava de ter fechado os olhos, mas, mesmo assim, abriu-os. Uma cortina azul cercava-o, filtrando a luz do sol. Ele levantou-se e olhou em volta. Tudo estava em perfeita ordem, não fosse por sua cabeça, que nunca esteve tão pesada. O garoto tinha a impressão de que estava esquecendo alguma coisa, até que se lembrou da irmã e da bruxa. Correu desesperado para a porta, mas estava trancada. Jogou-se contra ela algumas vezes, sem conseguir resultado algum. Procurou o machado para arrombar a fechadura. Não o encontrou. Lembrou-se da janela. Chegando nela, olhou para baixo através do vidro grosso. A altura até o chão era bem grande, mas ele achava que seria capaz de escalar a parede. No entanto, ela também estava trancada. Correu o olhar pelo quarto procurando uma maneira de fugir dali, e deparou-se com a mesinha ao pé da cama. Agarrou-a pelos pés e jogou-a com toda a força contra o vidro, que se espatifou em milhares de cacos afiados. Kevin pulou o parapeito da sacada e começou a descer o muro segurando-se nas brechas entre as pedras. Quando estava a cerca de dois metros do chão, saltou e caiu em cima de um arbusto.
Ele caminhou em torno do palácio procurando uma entrada, mas todas estavam trancadas. Foi só depois de muito tempo que encontrou uma porta velha e rachada de dava num cômodo empoeirado. Saiu por outra porta para um corredor estreito e sinuoso. Deste corredor entrou em outro, e depois outro. Perto da estátua de uma velha corcunda encontrou uma escada com os degraus gastos. Desceu-os saltando de dois em dois, sem se importar com barulho que fazia. Um cheiro doce subia das profundezas­, enchendo a escuridão com um ar denso e inebriante. Ecos ressoavam nas paredes gastas e chegavam-lhe aos ouvidos. Vozes, suspiros, e outros sons indistinguíveis. A escada terminava numa câmara circular e rodeada de tochas. Arcos escuros abriam-se em toda a extensão da parede curva, dando a impressão de que sombras o observavam e iriam atacá-lo sem o menor aviso. Vozes pareciam vir de todos os lugares, enchendo o espaço cavernoso com os brados de uma multidão.
Kevin correu colado à parede, esperando descobrir onde estariam a bruxa e a irmã. Quando passava por um dos portais, uma lufada de ar quente e doce envolveu-o. Ele entrou tateando no corredor escuro, sentido sob suas mãos pedras ásperas e úmidas. Virou à direita, depois à esquerda, e mais uma vez para esquerda. Uma sutil luz dourada emanava de uma porta entreaberta no fim do corredor; ele caminhou até ela com passos leves e silenciosos, abrindo-a com todo o cuidado possível, mas, mesmo assim, um rangido alto denunciou sua presença. Liana ergueu a cabeça, revelando pupilas dilatas e sangue escorrendo por sua boca e queixo, dando-lhe a aparência de um animal feroz e roxo. Ela lançou ao garoto um olhar apático e desdenhoso, e um sorriso cheio de dentes abriu-se em seu rosto.
— Você demorou. Eu já estava me perguntando se alguma das minhas estátuas tinha lhe feito algo — a voz da bruxa soava assustadoramente alta naquela sala. — Veio buscar sua irmã? Só espere eu acabar e ela será toda sua.
Sophie repousava nua sobre uma mesa alta e estreita. Pequenos cortes abriam-se em seu ventre, garganta e pulsos, derramando finos fios de sangue sobre a pele pálida, num assustador contraste de vermelho e branco. Ela ainda respirava, mas com muita dificuldade. O machado de Kevin e o punhal da irmã estavam sobre uma pequena mesa cheia de velas do outro lado do cômodo. Ele começou a caminhar até lá calmamente, encarando a bruxa.
— O que você quer dela? — Kevin fez toda a força para parecer calmo, mas sua voz trêmula o denunciava. Ele só esperava que a bruxa não fosse capaz de ler mentes.
— Eu já te disse, queridinho. Quero apenas a sua vida. Nada além da sua vida — a última palavra saiu mais parecida com um silvo do que com uma voz humana.
— O que você quer é vida? Então venha pega-la — o garoto pegou o punhal sobre a mesa e fez comprido corte no seu braço esquerdo, largando a arma em seguida. Ela caiu no chão, enchendo a sala com som de metal contra pedra. — Venha, pode beber. Sou muito mais forte do que ela. Existe muito mais vida em mim do que nela. Venha. Beba — ele estendeu o braço cortado em direção à bruxa.
Liana caminhou até ele trôpega, suas narinas arreganhando-se. Agarrando o braço dele com as duas mãos, ela bebeu o sangue avidamente. Um prazer supremo tomava o corpo da bruxa enquanto ela sugava o líquido quente do garoto, e nem reparou quando ele puxou um caco de vidro que trazia escondido na cintura. Kevin enfiou o caco afiado na barriga dela com toda a força, até não poder mais. Liana largou-o e andou para trás, olhando para o sangue que jorrava de sua barriga. Ela ergueu o olhar para o garoto, escancarou a boca e soltou uma gargalhada tão profunda e poderosa que fez o coração dele parar, e seu corpo todo gelou. Liana arrancou o caco de vidro e espatifou-o na palma da mão. Seu olhar havia se tornado ainda mais feroz. Não existia mais nada de humano nela.
— Garoto idiota! Você achou que seria capaz de me matar? — ela lhe deu uma tapa tão forte que Kevin voou sobre a mesa cheia de tocos de velas às suas costas. Ela espatifou-se sob seu peso, atirando lascas de madeira e cera quente em todas as direções. A bruxa debruçou-se sobre o garoto, derramando sobre ele seu característico cheiro doce. — Eu fui muito boa até agora, livrando-lhe de ver sua irmã morrer lentamente, mas você não me dá escolha. Você irá escutar cada grito de dor e desespero dela, verá seu corpo contorcer-se de agonia e presenciará a vida deixando-a — sobre a mesa, Sophie acordou com um suspiro, começando a gritar e a chorar quase que imediatamente.
Kevin olhou a bruxa nos olhos. Todo o medo havia abandonado o garoto, e um ódio abrasador queimava suas entranhas.
— Eu acho que não — ele ergueu o machado, que caíra próximo de sua mão, com a velocidade de raio, partindo ao meio o pescoço da bruxa com um único golpe. A cabeça cheia de cabelos roxos tombou para o lado com um baque seco, e o corpo de Liana desabou para trás.
Kevin largou a arma e correu até a irmã, que chorava copiosamente sobre a mesa. Ele passou a mão nos seus cabelos e sorriu para ela. Sophie retribuiu o sorriso entre soluços, ainda com os olhos cheios de lágrimas.
— Tudo vai ficar bem agora — ele disse, também chorando. — Acabou.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 2



A FLORESTA ASSOMBRADA


 A garota ergueu os olhos para o céu, mas as árvores eram tão próximas umas das outras que não era possível ver as estrelas, muito menos a lua, que estava negra naquela noite. Eles andaram tateando durante um tempo, mas depois de muitos tropeços e pés presos em buracos e raízes, resolveram parar.
                — Quando o sol nascer continuamos — disse Kevin, encostando-se numa árvore e sentando no chão. — Durma.
                Sophie juntou as folhas que encontrou ao seu redor e deitou sobre elas, mas não conseguiu dormir. O vento que soprava entre as árvores fazia-as ranger e balançar, enchendo a floresta com fantasmagóricos agouros, gelando a espinha da garota. O resto da noite pareceu demorar uma eternidade para passar, mas, quando o sol enfim começou a nascer, uma pálida luz cinzenta inundou a floresta, revelando troncos antigos e retorcidos, com folhas escuras que bebiam o fraco brilho que conseguia passar pelas copas das árvores. Não se podia enxergar mais do que dois metros em qualquer direção, tão densa era a vegetação. Kevin ainda estava sentado no mesmo lugar, com olheiras e um profundo arranhão na bochecha. Ele encarava o nada, com o machado em mãos. Sophie olhou em volta, tentando descobrir de onde haviam vindo, mas eles andaram às cegas durante muito tempo, e agora ela tinha perdido totalmente a noção de onde se encontravam.
                — Estamos perdidos — disse Sophie, levantando-se e limpando o vestido de tecido rústico.
                Kevin assustou-se, agarrando o machado com força e olhando em volta. Ele encontrou a irmã em pé, tirando gravetos do cabelo. Após olhar rapidamente as árvores ao seu redor, chegou à mesma conclusão.
                — Não podemos estar muito longe da estrada, não andamos tanto assim.
                — Para onde vamos agora?
                — Não sei — disse ele, já de pé e girando nos calcanhares. — Podemos procurar alguma coisa para comer, quem sabe encontramos até uma cabana.
                — Uma cabana? Aqui? — Sophie franziu a testa.
                — Você tem alguma ideia melhor? — rebateu ele, irritado. A irmã limitou-se a olhar para o chão. — Me dê seu colar.
                — O quê?
                — Seu colar. Me entregue ele.
                — Pra que você o quer? — rebateu ela, agarrando-se ao objeto. — Foi a mamãe que me deu.
                — Vamos usar as contas dele para marcar o nosso caminho pela floresta. Se elas acabarem, nós voltamos para cá e tentamos outra direção.
                Sophie hesitou em tira-lo do pescoço, mas por fim entregou-o ao irmão. Ele partiu o fio que o sustentava e segurou as contas na mão em concha. Os dois penetraram ainda mais fundo na floresta sombria, passando por troncos cinzentos e galhos retorcidos. Kevin ia à frente, jogando as bolinhas vermelhas por onde passava. Caminharam por horas e horas, sem encontrar nada que lhes pudesse ser útil. Cada árvore parecia ser igual a anterior, derramando as mesmas sombras sobre o mesmo solo em decomposição. As contas, enfim, acabaram, e os dois começaram a regressar. Voltaram seguindo o caminho das bolinhas vermelhas, pegando-as e guardando nos bolsos, no entanto, depois de algum tempo, não conseguiram mais encontra-las. Procuraram ajoelhados por entre folhas e raízes, mas não acharam as outras contas em lugar algum. Sophie, depois de desistir, levantou-se e começou a limpar os joelhos, quando enxergou um sutil brilho vermelho numa árvore próxima. Aproximou-se e descobriu que era uma das contas, presa num dos galhos. Esticou a mão e pegou-a, olhando-a com curiosidade.
                — Foi você que a colocou aqui? — perguntou ela, sem olhar para trás.
                Não foi uma resposta que chegou aos seus ouvidos, e sim um grito e um baque surdo. Ela virou-se, sobressaltada, e encontrou o irmão jogado no chão, empunhando o machado e lutando contra... alguma coisa que havia agarrado seu pé. Foi quando sentiu algo roçando em seus cabelos, e, no momento em que levantou a mão e levou-a a cabeça, um galho enroscou-se em seu pulso. Ela puxou o braço com toda a força, mas o galho prendeu-a ainda mais, e sentiu uma raiz enrolando-se em seu tornozelo. Um grito de fúria chamou sua atenção, e, quando olhou para frente, deparou-se com o irmão correndo em sua direção, erguendo o machado sobre a cabeça. Ela fechou os olhos, esperando pelo pior, mas tudo o que sentiu foi o pulso que estava preso relaxar. Quando abriu os olhos, seu braço estava livre novamente, e Kevin atacava a raiz que se enroscava em sua perna. No momento em que ele finalmente conseguiu corta-la, o que sobrou voltou contorcendo-se para dentro da terra. Mais galhos e raízes erguiam-se ao redor dos irmãos, então os dois começaram a correr desembestados por entre as árvores; Kevin na frente, golpeando com o machado qualquer coisa que entrasse em seu caminho, e Sophie atrás, brandindo o punhal e cortando o ar, e algumas folhas.
Os dois tiveram a impressão de ver rostos nas árvores, alguns sorridentes, outros bravos, sussurrando para eles qualquer coisa incompreensível. A floresta havia se tornado mais fechada, e ficava cada vez mais difícil driblar dos galhos que tentavam agarra-los. Um deles agarrou no braço em que Kevin levava o machado, e outro, enroscou-se em sua cintura. Ele procurou pela irmã, e encontrou-a sendo arrastada, aos gritos, por uma raiz. A garota apunhalou-a, mas outras já haviam se juntado a primeira, e subiam por suas pernas. Sophie estava sendo puxada em direção a uma árvore cinzenta e esguia. Ele tentou gritar, mas um galho grosso enroscou-se em sua boca e garganta, sufocando-o. Sentiu-se sendo puxado para trás, com raízes e cipós enrolando-se por todo o seu corpo, apertando-o cada vez mais forte.
O ar já não entrava nem saia de seus pulmões, e sua vista estava começando a turvar-se. Ele não tinha mais forças em seus membros, e parou de resistir à árvore. Kevin não escutava mais os gritos da irmã, e a floresta escurecia e fechava-se ao seu redor. Quando ele já havia abandonado qualquer ilusão de sair vivo dali, uma luz dourada irrompeu na sua frente, derramando-se sobre uma sombra púrpura. O vulto caminhou em sua direção, banindo as árvores para a escuridão. A figura ficava cada vez mais próxima, num turbilhão de roxo e dourado. Kevin perdeu todas as suas forças, e mergulhou nas sombras da floresta, deixando qualquer luz ou esperança para trás. A morte é roxa, foi o que ele pensou enquanto despencava nos ecos da escuridão.



(continua)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 1


   Um dia desses, arrumando meu quarto, encontrei uns livrinhos infantis que eu ganhei quando criança. Entre eles estava João e Maria, meu conto de fadas favorito. O que mais me encanta nessa história é fato de duas crianças — irmãs, o que só dificulta as coisas — se unirem para sobreviverem num ambiente hostil e assustador. Eles não precisam da ajuda de fadas ou coisas do tipo, simplesmente encaram os desafios e dificuldades que encontram no caminho, não importa se é uma floresta sombria ou uma bruxa filha da p... É por isso que decidi escrever uma nova versão dessa história, mostrando a visão que eu — agora um pouco mais crescidinho — tenho deste “conto de fadas” sem fadas.

   A narrativa me dominou, e as coisas saíram de controle. Irei posta-la dividida em 3 partes, e espero, do fundo do coração, que ela consiga ser tão boa quanto o conto original.

            Era uma vez...



 ECOS NA NOITE

Sophie abriu os olhos assustada. Sua respiração estava pesada, o corpo coberto de suor, e o coração palpitava freneticamente, retumbando em seu peito. O silencio inundava a noite, envolvendo a garota num absoluto vazio.  Estrelas espreitavam-na por entre as altas árvores. Gotas de luz num mar de escuridão. Tentando se acalmar, ela questionou-se o que a havia acordado. Talvez tivesse sido apenas mais um dos sonhos que vinha  tendo desde o que aconteceu na aldeia. Era frequente acordar no meio da noite chorando, e até gritando; mas dessa vez não havia lágrimas em seu rosto, e a paz reinava na noite escura e fria, até que um som chamou sua atenção, o som de folhas sendo pisadas, e um vulto passou ao seu lado. Ela ergueu-se com um salto, agarrando o punhal que carregava consigo, e apontando-o para todos os lados.
                — Fique quieta — disse um sussurro vindo com o vento. Ela abaixou a mão e caminhou em direção a voz, cautelosa. O irmão estava encostado numa árvore, olhando para a mata escura.
                — O que houve? — ela perguntou quando o alcançou.
                — Ouvi alguma coisa — sua voz era quase inaudível.
                Os dois quase não respiravam, esperando escutar ou ver algo, ficando assim durante um longo tempo, e quando já estavam perdendo as esperanças, um ruído metálico chegou aos seus ouvidos, sutil como uma brisa. Os irmãos se olharam, ela assustada, ele pálido, então Kevin saiu de detrás da árvore e começou a caminhar em direção ao som, cauteloso. A irmã olhou-o aterrorizada e incrédula, e, controlando-se para não gritar, disse:
                — O que você vai fazer?
                — Descobrir de onde vem esse som — Kevin respondeu, sem olhar para trás.
                — Isso é loucura — rebatou ela, com a voz esganiçada.
                O irmão não falou mais nada, apenas continuou andando. Sophie olhou em volta, para a escuridão que a cercava, saltou de detrás da árvore e correu atrás dele, fazendo muito barulho. “Onde você pensa que vai?” ele perguntou virando-se para ela, irritado.
                — Vou com você.
                — Não, não vai. Você vai ficar aqui e me esperar — Kevin disse, voltando a andar.
                — Não vou ficar aqui sozinha — ela disse, agarrando o braço do irmão.
                Ele encarou-a com olhos furiosos, iluminados pela fraca luz das estrelas, e disse, apontando o dedo para o seu rosto:
                — Se você fizer algum barulho, por menor que seja, eu te mato.
                — Não mata não.
                Eles caminharam por sobre o chão da floresta como duas sombras, sem fazer nenhum ruído. O barulho metálico voltou a reverberar por entre as árvores, mais alto do que antes. Chegaram a uma pequena colina, e Kevin subiu na frente, agachado, agarrando-se a raízes e pedras; Sophie veio logo atrás, seguindo o rastro do irmão. À medida que subiam, outros sons chegavam aos seus ouvidos: passos, o relinchar de cavalos, vozes, gargalhadas. Quando alcançaram o topo do morro ficaram encolhidos atrás de um arbusto. Esticando a vista para baixo, depararam-se com um acampamento. Uma fogueira ardia no centro dele, derramando sua luz bruxuleante e alaranjada sobre tendas rústicas, cavalos e carroças. Alguns homens bebiam e riam em torno do fogo, usando mantos de pele e carregando espadas na cintura. Kevin e a irmã ficaram paralisados olhando para os estranhos em torno da fogueira, até que alguma coisa no limite do acampamento chamou a atenção do garoto. Ele apertou os olhos, focando numa carroça que não parecia ter nada de diferente das outras, mas... ele enxergou uma pálida mão agarrada as suas grades, e depois outra. Kevin forçou ainda mais a vista, então percebeu que eram pessoas que estavam dentro dela. Embora não pudesse distinguir os rostos envoltos em sombras, podia imaginar quem eram.
                — São eles — disse uma voz tremula ao seu lado.
                Ele virou-se para o lado e olhou para a irmã. Ela estava pálida e com os olhos vidrados, agarrando-se com força aos galhos do arbusto. Kevin pegou a mão dela e arrastou-se para trás, procurando ser o mais silencioso possível, mas, agora, sua respiração lhe parecia ser tão sonora quanto um trovão. Os dois esgueiraram-se pelas árvores, caminhando às cegas por entre troncos e raízes. Antes que percebessem, já estavam correndo pela floresta afora, fugindo do acampamento e dos homens que nele estavam. Galhos baixos aranhavam seus rostos, e pedras soltas os ameaçavam com tropeções, mas eles não paravam. Por mais tortuoso que parecesse o caminho, eles não podiam parar.
                Lágrimas corriam pelo rosto de Sophie, derramando-se sobre as folhas em decomposição. Imagens da aldeia em chamas voltaram a sua cabeça, e ela quase podia sentir o cheiro de madeira e carne queimando. A garota já não escutava o som de seus passos, nem dos galhos quebrando sob os seus pés; o único som que reverberava em sua cabeça eram os gritos da mãe, gritos de terror... e as gargalhadas. Sophie achava que nunca conseguiria esquecer aquelas gargalhadas. Gargalhadas diabólicas, de um prazer sádico. Provavelmente sua mãe era uma das prisioneiras dos bárbaros agora, ou poderia ter tido o mesmo destino de seu pai. Ele havia lutado para defender a aldeia, mas eles o pegaram e... a fogueira...
                Ela emergiu de suas lembranças com o irmão balançando seu ombro. Sophie estava ajoelhada no meio da estrada por onde tinham fugido da aldeia, com as mãos sobre a terra nua, e uma poça de vômito na sua frente. Sua respiração estava irregular, o peito queimava, e um gosto amargo fazia-se presente em sua boca. Ela ergueu a cabeça para olhar o irmão. Ele carregava o machado que pegou antes de fugir da aldeia. Havia medo em seus olhos, e lágrimas, que se negavam a correr sobre sua pele pálida.
                — Não podemos ficar aqui. Eles vão nos encontrar. Eles têm cavalos. Precisamos sair da estrada. Precisamos nos afastar o máximo possível. Vamos — Kevin disse, arfando.
                Sophie se levantou, e limpou a boca com as costas da mão. Os dois caminharam juntos em direção à floresta fechada do outro lado da estrada. Pararam na beira dela, deram as mãos e adentraram-na, sentindo o cheiro das folhas mortas e a total escuridão rodeando-os.


(continua)